Pelé x Mané: em um confronto para a história, Santos derrubou o Botafogo no Maracanã na Taça Brasil de 62
Disputada em abril de 1963, famosa decisão do torneio viu uma das grandes atuações da geração do Peixe e do Rei, diante de um Maracanã rendido e admirado
Tornou-se quase um fetiche, já há muitos anos, no imaginário de todo fã de futebol, ver uma final de Liga dos Campeões da UEFA que tenha de um lado um time de Lionel Messi contra um de Cristiano Ronaldo no outro. O desejo, um tanto quanto uma obsessão, era ainda mais forte quando ambos representavam cores tão antagônicas como as de Barcelona e Real Madrid. A transferência do português à Juventus, em 2018, pode ter diminuído o impacto da rivalidade que os dois melhores jogadores do mundo mantém, mas ela segue viva a plenos pulmões, revigorada na atual edição da competição europeia, que sorteou Barcelona e Juventus para o mesmo grupo da fase inicial.
Sorte maior de presenciar uma decisão envolvendo lendários camisas 10 contra 7 tiveram os brasileiros, nos anos 60. E nesse ponto, num mundo sem internet, onde o rádio era a principal ferramenta de informação simultânea, os brasileiros, de fato, foram os únicos felizardos. Afinal de contas, o último capítulo da Taça Brasil de 1962, realizado em abril de 1963, colocou frente a frente o Santos de Pelé contra o Botafogo de Garrincha disputando o troféu nacional. Na imprensa, a unanimidade: tratava-se do "maior jogo do mundo", título dado pelo jornalista Ney Bianchi na famosa revista "Fatos e Fotos".
- Santos e Botafogo eram considerados, na época, os dois melhores times do mundo. Pesquisando para o livro "Time dos Sonhos", eu vi, numa notícia pequena que saiu na Folha de SP, a informação de que os dois times melhores posicionados no ranking mundial eram Botafogo e Santos. E você tem tudo isso sendo jogado no Maracanã. Era resplandecente ver um jogo de nível, um clássico entre alvinegros, no templo do futebol. O Santos também era muito popular no Rio de Janeiro. As pessoas gostavam do Pelé. O torcedor carioca sempre foi menos "amargo" que o paulista, porque ele enxerga méritos no adversário. Então, o Santos sempre era bem recebido no Rio. O Pelé, grande ídolo do futebol brasileiro, já tinha marcado um gol de placa contra o Fluminense em 1961 - afirma, em contato ao LANCE!, o jornalista e escritor Odir Cunha, ex-coordenador de história e cultura do Santos.
"O maior jogo do mundo": a famosa matéria da revista "Fatos e Fotos", assinada pelo jornalista Ney Bianchi (Divulgação Santos FC)
Rivalidade certamente não é o substantivo correto a ser utilizado para definir a relação entre Pelé e Garrincha, muito pelo contrário. Juntos, formaram uma das mais marcantes duplas do esporte, vestindo a camisa da Seleção Brasileira. E não é força de expressão: das 40 vezes que teve Pelé e Mané em campo, o Brasil não perdeu nenhum jogo (36 vitórias e quatro empates). A "Dupla dos Sonhos" venceu as Copas de 1958 e 1962.
Mas eles também tinham, naturalmente, suas aspirações nas competições de clubes. Sobretudo numa época onde o futebol continuava sendo utilizado como um aparato ideológico, nove anos após o fim da Era Vargas, a primeira a consolidar a percepção de futebol como esporte verdadeiramente nacional e popular, os alvinegros Botafogo e Santos disputavam o status de melhor time do país, conduzidos pelos seus gênios.
Com o time da Estrela Solitária, Mané, ao lado de Nilton Santos e Zagallo, venceu o Campeonato Carioca em 1957, 1961 e 1962. Também levantou os troféus do Rio-São Paulo de 62 e 64. Com a memorável geração do Peixe da década de 60, Pelé dominou as competições estaduais (dez Paulistas), nacionais (cinco Taça Brasil e uma Torneio Roberto Gomes Pedrosa), continentais (duas Libertadores) e mundiais (dois Interclubes).
Mais do que uma "simples" final de Brasileiro, o duelo entre Botafogo e Santos atiçou o imaginário do torcedor pela presença então viva da conquista da Canarinho na Copa do Mundo no Chile, meses antes, quando Garrincha liderou ao segundo título mundial a equipe comandada por Aymoré Moreira, desfalcada de Pelé desde a segunda rodada, cuja espinha-dorsal era formada justamente por atletas dos dois clubes.
No mesmo ano, o Santos começou a solidificar a imagem de esquadrão ao vencer a Libertadores, contra o Peñarol, e o Mundial de Clubes, contra o Benfica de Eusébio, quando Pelé, depois de marcar dois gols na vitória por 3 a 2 na ida no Maracanã, silenciou o Estádio da Luz com mais de 70 mil pessoas balançando três vezes as redes no triunfo por 5 a 2. Também em 1962, Garrincha firmou uma das mais recordáveis atuações da carreira. Na final do Campeonato Carioca, o Anjo das Pernas Tortas marcou dois gols e distribuiu dribles desconcertantes na vitória por 3 a 0 diante do Flamengo.
- Não havia dúvida no mundo de que o melhor futebol praticado no planeta era o brasileiro. Todos os jogadores da Seleção jogavam no país, incluindo, logicamente, os dois melhores jogadores do mundo, Pelé e Garrincha. Nessa final da Taça Brasil, nós tínhamos oito jogadores que foram titulares da Copa de 1962 (isso considerando que o Pelé era titular, mas se machucou e entrou o Amarildo, que era do Botafogo): Garrincha, Amarildo, Zagallo e Nilton Santos, pelo Botafogo; Gilmar, Mauro, Zito e o Pelé, no Santos. Além deles, Coutinho, Mengálvio e Pepe, trio do Peixe, eram reservas da Seleção. Enfim, era quase o Brasil em campo - diz Odir.
A DECISÃO
Botafogo e Santos decidiram a Taça Brasil de 1962 (Divulgação Santos FC)
Santos e Botafogo iniciaram a final da Taça Brasil no Pacaembu. O 19 de março de 1963, uma terça-feira, viu o Peixe abrir vantagem com a vitória por 4 a 3. O Botafogo respondeu à altura 12 dias depois: diante de 102,260 pessoas no Maracanã, o Alvinegro se impôs e impactou nas quatro linhas com o triunfo por 3 a 1. Com a série empatada, seria necessário uma partida de desempate. Foi quando entrou a figura fabulosa de Pelé. O Rei, então em branco nos confrontos, deixou para o último ato sua melhor versão. Mas não só ele.
Pressionados, os santistas mostraram por que estavam acima dos demais do planeta bola àquele momento. Dois dias depois da derrota, mais uma vez o Maracanã foi palco de Botafogo x Santos, o derradeiro, num 2 de abril. O técnico Lula repetiu a escalação, mas fez uma alteração tática que abriu caminho para a histórica noite.
- O Dorval foi decisivo pro Santos nessa partida, no sentido tático e técnico. Por que no tático? No jogo que o Santos perdeu no domingo, o Zagallo foi um dos melhores em campo, porque voltava pra ajudar a marcação e avançava pro ataque. Portanto, no de terça-feira, o Dorval marcou o Zagallo. Ele impediu as avançadas do Zagallo e, com a bola nos pés, rápido como era, foi decisivo no duelo individual com o Nilton Santos, que já não estava no auge e não exibia a velocidade de antes. O gol do Dorval, o primeiro da partida, desmontou o Botafogo todo. Foi o caminho pra goleada - explica Odir.
Cinco a zero. Um placar que foge de qualquer padrão para um jogo de tamanho grau de importância, perante dois times de níveis semelhantes, individuais e coletivamente, mas que só o Santos de Gilmar, Lima, Mauro, Calvet, Dalmo; Zito, Mengálvio; Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe conseguiria assinar. Pelé, com dois gols, chancelou, como não poderia ser diferente, outra célebre data do seu Peixe. Dorval, Pepe e Coutinho completaram a festa.
- Até pela importância, eu colocaria essa atuação como uma das dez melhores do Pelé. Em sete decisões de título brasileiro que o Pelé participou, ele só perdeu uma (Cruzeiro, em 66). E foi em um ano difícil para o Pelé. Ele não estava bem, se machucou muito. No mais, todas que ele participou, o Santos ganhou, o mesmo vale para o Mundial de Clubes e a Libertadores. E eu sempre lembro de uma frase do próprio Pelé, que eu perguntei pra ele: a melhor partida da vida dele foi contra o Benfica, pela final do Mundial, no Estádio da Luz. Naquele dia os estrangeiros se renderam ao Pelé - confessa Odir Cunha.
"O Santos tinha uma coisa: dificilmente perdia duas vezes seguidas”, disse o irreverente Coutinho, anos depois do 5 a 0. Na epopeia do futebol mundial, o Botafogo de Garrincha e o Santos de Pelé estão com seus lugares marcados. Mas só um poderia levantar a taça. E foi o Santos, com seu confiável camisa 10 em um dia tão especial quanto rotineiro na carreira.
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