Copa do Mundo 2022: Da 'pelada' ao profissional, o futebol é a paixão dos paraenses

Em tempos de Copa do Mundo, times se mantém fiéis ao universo raiz da Pelada, que movimenta um vasto circuito de clubes por toda Região Metropolitana de Belém

Luiz Guilherme Ramos
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Quando não está de olho nos atacantes, o goleiro Rafael costuma ver a vida das alturas. Do alto das torres de telecomunicações, ofício que há anos garante o sustento dele e da família, o instalador de 40 anos aguarda o final de semana para ocupar-se de outra paixão, junto aos companheiros do Paulo Cícero, time de pelada nascido no bairro do Guamá, há 12 anos, que em tempos de Copa do Mundo, mantém firme o calendário de jogos, enquanto a seleção canarinho não entra em campo em busca do hexa. 

Veja um dia de jogo de 'futebol raiz'

 

Rafael é um exemplo, entre tantos que dividem as tarefas do dia com o amor pelo futebol. Remista de carteirinha, o instalador conta que tentou engrenar na carreira, mas acabou optando pelo estudo. "Eu sou remista desde criança. Antigamente cheguei a fazer teste. Não passei por conta do estudo, tive que escolher. Hoje em dia é só torcer, comemorar, vou no estádio quando posso. Jogo futebol desde os 16 anos. Já disputei vários campeonatos por vários times, e há sete meses faço parte do Paulo Cícero", comenta. 

No universo peladeiro, as partidas acontecem geralmente aos finais de semana e costumam reunir simpatizantes, familiares e abnegados dos clubes, que embora sejam amadores, cultivam com seriedade a organização dos jogos e do calendário anual, que ao fim da temporada, presenteia os melhores colocados com dinheiro e materiais esportivos. Somente no Ranking do Futebol Pelada Master, cerca de 50 times correm atrás do olimpo amador, como explica o presidente do Paulo Cícero, o vigilante Junior de Freitas. 

Jogadores do Paulo Cícero antes da bola rolar em Marituba. (Thiago Gomes / O Liberal)

"Muitos desses jogos são marcados nos grupos de pelada na internet. Nós fazemos parte de uns três. Aí nós marcamos os jogos. E nesses amistosos conta ponto até o final do ano, quando os quatro melhores colocados fazem uma semifinal e premiação em dinheiro. Isso no meio de 40, 50 times", conta. O Paulo Cícero é um dos times mais tradicionais de pelada e tem uma história muito comum no meio da bola, ao nascer justamente da paixão pelo esporte. 

"A gente começou em 2011 e no início era time de 9, para disputar a Copa Pará, essas competições assim. Com o tempo, em 2016, a gente deu um tempo, e voltamos em 2018, já no formato de Master. Desde então estamos jogando nessa faixa, de 35 anos para cima. Tem os ex-profissionais que jogam de vez em quando, como o Ewerton, o Rogério. Algumas pessoas nesse nível e outros peladeiros raiz, que jogam sempre. Tem a turma do Guamá, do Barreiro. São peladeiros bons que estão sempre ativos, disputando campeonatos", explica. 

No último dia 4 de novembro, o Paulo Cícero foi para mais um compromisso oficial, desta vez contra o Grêmio Marituba, no campo da Sagri. O local do amistoso pertence ao adversário, fato que torna o duelo indigesto, como observado por um dos principais atletas do time, o atacante Ewerton, ex-goleiro de Remo e Castanhal. "Já jogamos duas vezes contra esse adversário. Foram dois empates aqui. No primeiro jogo estávamos vencendo por 3 a 0, mas eles empataram. Eles são um adversário muito difícil e jogando em casa pressionam muito. Mas vamos correr para cima", garante. 

Paulo Cícero e Grêmio Marituba empataram em 1 a 1. (Thiago Gomes / O Liberal)

As condições de tempo não foram as melhores. O distante campo da Sagri não tem qualquer estrutura profissional, e diante da chuva que se avizinhava com o passar do tempo, não pode receber o público contumaz. Ao invés disso, alguns moradores da região chegam para assistir os jogos e trocar os assuntos mais aleatórios. As críticas discretas a cada passe errado nem de longe lembravam a pressão dos jogos profissionais, mas serviam para dar ânimo aos atletas, que desafiavam o temporal para garantir o empate em 1 a 1. 

Aliás, foram os donos da casa que saíram na frente, após uma falha literalmente amadora do arqueiro eletricista. O chute venenoso resvalou na falha do gramado e enganou Rafael, para a alegria da torcida mandante. A desvantagem deixou um dos diretores do Paulo Cícero contrariado. Adamoro Costa, açougueiro de ofício, observava tudo debaixo de uma árvore, que oferecia alguns centímetros de proteção contra a chuva torrencial, até que o empate foi garantido quase no fim do jogo. 

"Não foi o resultado que gostaríamos, mas o futebol é assim mesmo", ressalta Ewerton, que chegou a jogar futebol profissionalmente, com passagem pelo Clube do Remo e Castanhal. No entanto, a posição de outrora é bem diferente da que atua no Paulo Cícero, por causa da influência de um dos maiores atletas da história recente da Seleção Brasileira. 

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"Desde moleque a gente brinca, joga na rua, nos campos de bairro. E nisso eu sempre joguei na linha, mas um dia eu vi o Dida agarrando pelo Corinthians e Seleção, e me apaixonei. Fiquei com isso na cabeça, querendo ser igual ele, mas na pelada eu nunca fui goleiro, sempre joguei na linha. Meus amigos até brincam comigo. 'Tu vai deixar de fazer gol para tomar gol'. Eles não acreditavam, mas eu disse que iria tentar. Se não desse, pelo menos eu fui atrás. Graças a Deus deu certo por um tempo, fui profissional por alguns anos e hoje sigo na linha", explica. 

Com a aproximação da Copa do Mundo, o futebol pelada deve sofrer algumas interrupções por conta dos jogos, talvez a única razão para que o compromisso do final de semana seja revisto, em nome da mesma paixão, que entra em campo no Qatar, a partir do dia 24. "Chega na época de Copa do Mundo, Libertadores, a gente já não joga. Não marcamos jogos, porque torcer pelo Brasil é mais importante, né? Houve recentemente a final da Libertadores, onde também não jogamos, mas reunimos o grupo para ver o jogo. Tem que separar bem as coisas", garante o presidente. 

Futebol Pelada

Brincadeiras à parte, o universo peladeiro segue com força e mantém viva uma tradição muito peculiar do brasileiro, tornando o esporte um hábito muito mais familiar do que qualquer outra atividade, incluindo a escalada em torres com 70, 80 metros de altura. "Sabendo trabalhar os dois, a gente consegue bons resultados. Nos dois casos é preciso se colocar no lugar certo, saber o posicionamento correto para evitar o pior, mas no geral o futebol é mais fácil", alerta Rafael, com toda razão. 

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