No Norte, 46,1% de endividados já apostam em bets, revela pesquisa; entenda cenário
Endividados buscam nas apostas uma saída rápida para crises financeiras, mas encontram um ciclo de perda, ilusão e agravamento da vulnerabilidade social.
Em meio ao aumento do endividamento e à precarização das condições de vida, uma pesquisa inédita da Serasa revela que mais da metade dos inadimplentes brasileiros já apostou em plataformas de bets — e a Região Norte se destaca em frequência e impacto. A promessa de dinheiro fácil se transforma em armadilha emocional e financeira, acentuando a exclusão social e exigindo regulação mais firme. Fontes entrevistadas pelo Grupo Liberal alertam: apostar, nesse cenário, não é lazer — é sintoma de uma crise estrutural profunda.
Apostas e endividamento: realidade da região Norte
Uma pesquisa da Serasa, realizada entre 10 e 18 de outubro de 2024, revelou que, no Brasil, 46% dos endividados já apostaram em bets. No Norte do país, esse número é um pouco superior, atingindo 46,1% dos entrevistados.
Entre os apostadores atuais, 58% fazem apostas há menos de dois anos, enquanto no Norte, a porcentagem sobe para 78,4%. A pesquisa também destaca que 56% dos apostadores em todo o país temem se viciar, um receio compartilhado por 56,3% dos entrevistados na região Norte.
A pesquisa apontou ainda que 52% dos apostadores em todo o Brasil admitiram ter perdido mais dinheiro do que ganharam. Na região Norte, essa proporção foi de 41,4%.
Além disso, 29% dos endividados começaram a apostar em busca de dinheiro rápido, e 27% queriam uma renda extra. No cenário nortista, 31,2% estavam atrás de uma renda extra, enquanto 27,1% buscavam dinheiro rápido.
Outro dado é que 10% dos apostadores no Brasil recorreram a crédito para financiar as apostas, enquanto no Norte, esse número chegou a 13%. Além de tudo, 13% dos apostadores afirmam ter deixado de pagar outras contas para jogar, um comportamento observado em 17% dos entrevistados do Norte.
A pesquisa “A Relação dos Inadimplentes com as Apostas”, realizada em parceria com o Instituto Opinion Box, revelou que 5 em cada 10 endividados já apostaram pelo menos uma vez, sendo que 34% continuam apostando. Na região nortista, esse número é de 37,9%.
As principais motivações para iniciar as apostas, tanto em nível nacional quanto no Norte, foram a tentativa de obter dinheiro rápido para quitar dívidas e a busca por uma renda extra. No Norte, 31,7% apostaram para conseguir uma renda extra, enquanto 27,1% tinham o objetivo de ganhar dinheiro rapidamente.
A pesquisa foi realizada com 4.463 consumidores inadimplentes de todas as regiões, com uma margem de erro de 1,4 pontos percentuais e intervalo de confiança de 95%.
Crédito como solução para a sobrevivência: o crescente endividamento no Brasil
O aumento do endividamento no Brasil está relacionado a fatores estruturais, como a precarização da vida material, que afeta principalmente as famílias mais pobres.
Segundo o economista André Cutrim Carvalho, professor-pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA), “o salário já não é suficiente para manter o básico, e as pessoas são levadas a buscar crédito como forma de sobreviver, não como escolha de consumo”.
Ele ressalta que a informalidade no mercado de trabalho e a inflação criam um cenário de escassez contínua, dificultando o planejamento financeiro.
Além disso, o acesso ao crédito, muitas vezes, ocorre em condições abusivas, com juros altos e contratos pouco claros, funcionando como “uma armadilha para quem já está em situação de vulnerabilidade”.
Apostas online: entre entretenimento e crise social
As apostas online, inicialmente vistas como uma forma de lazer, se tornaram um sintoma de uma crise social mais profunda, segundo Cutrim.
“A aposta vira um mecanismo de sobrevivência emocional e financeira, ainda que ilusório”. Esse comportamento, segundo ele, tende a agravar o quadro de vulnerabilidade, gerando “endividamento crescente, deterioração da saúde mental e desestruturação familiar”, afirma.
As apostas acabam desviando recursos que poderiam ser usados para necessidades básicas ou investimentos em atividades produtivas para um setor altamente concentrador e improdutivo.
Cutrim alerta que o impacto vai além dos indivíduos e afeta a sociedade como um todo: “O SUS vai lidar com os efeitos psicológicos, os CRAS com a vulnerabilidade social e o sistema de justiça com os conflitos familiares”.
Regulação das apostas: uma questão pública
A solução para esse problema, segundo Cutrim, passa pela regulação das apostas, mas não apenas com foco na arrecadação fiscal.
Ele defende a implementação de regras que protejam o cidadão vulnerável, com “mecanismos que limitem os gastos, verifiquem idade e perfil socioeconômico e controlem a propaganda dirigida aos públicos mais suscetíveis”.
Cutrim também afirma que “regulamentar o setor é essencial para quebrar o ciclo de endividamento e dependência entre os mais pobres”.
Bolsa Família e apostas: proibição ou inclusão?
Sobre a restrição do acesso de beneficiários do Bolsa Família às plataformas de apostas, Cutrim é cauteloso.
“Proibir diretamente pode parecer uma forma de proteção, mas também corre o risco de estigmatizar ainda mais essas famílias”, avalia.
Ele acredita que o foco deve ser fortalecer a função social do programa, “garantir que essas famílias tenham acesso à informação qualificada e limitar a atuação predatória das plataformas de apostas”.
Para ele, “o combate às apostas entre os mais pobres não pode se dar por meio da punição, mas pela criação de alternativas concretas de renda e oportunidade”.
A armadilha do lucro fácil
Patrícia Camilo, especialista da Serasa em educação financeira, explica que a busca por apostas online como uma solução rápida para dívidas é reflexo da falta de alternativas.
“Muitos brasileiros ainda enxergam as apostas como uma possível saída. Mas, se não houver cautela, isso pode piorar a situação, consumindo recursos que deveriam ser destinados a necessidades básicas e criando um ciclo difícil de romper”, afirma.
Ela destaca que, embora as apostas possam começar como uma distração, elas podem rapidamente se transformar em um vício, agravando ainda mais o endividamento.
O mito do lucro fácil
Patrícia alerta que as apostas não são um investimento, mas sim uma aposta no acaso.
“Apostar é se basear no acaso, sem qualquer garantia de retorno. Já um investimento real é feito com planejamento, análise e controle de riscos”, afirma.
Ela destaca que, apesar da crescente propaganda das plataformas de apostas, a chance de perder dinheiro é muito maior do que a de ganhar.
“As apostas podem parecer uma solução mágica, mas acabam colocando o apostador em uma situação ainda mais vulnerável. É uma armadilha emocional e financeira que se aproveita do desespero”, completa.
Renegociação como alternativa
Patrícia também aponta que programas como o Desenrola Brasil e o Feirão Limpa Nome são alternativas viáveis para quem busca sair do vermelho.
“Esses programas oferecem descontos significativos e condições facilitadas”, afirma, destacando que mais de 8 milhões de acordos foram firmados durante o Feirão Limpa Nome, realizado entre fevereiro e março de 2025.
Esses programas oferecem uma oportunidade de reorganizar a vida financeira sem recorrer a soluções ilusórias como as apostas.
Educação financeira: A chave para evitar o endividamento
A educação financeira é essencial para evitar decisões impulsivas. Segundo Patrícia, “quando a pessoa aprende a lidar com o próprio dinheiro, consegue planejar o orçamento, estabelecer prioridades e criar uma reserva de emergência”.
Ela conclui dizendo que “educar-se financeiramente é o primeiro passo para se libertar da dependência de soluções arriscadas e passageiras. É isso que proporciona autonomia e estabilidade”.
A psicologia por trás das apostas: A ilusão da solução rápida
Valéria Meirelles, psicóloga de dinheiro para endividados, explica que as apostas online se tornam uma solução ilusória para quem está em um momento de desespero financeiro.
“Você entra com pouco dinheiro e tem a chance, ainda que mínima, de ganhar muito. Esse pensamento mágico, no momento do desespero, bloqueia o raciocínio crítico”, observa.
Ela explica que, muitas vezes, as decisões são tomadas impulsivamente, guiadas pela esperança de que uma única aposta possa resolver a situação.
A dor da perda e o ciclo de dependência emocional
Valéria destaca que as perdas nas apostas geram frustração, o que leva a uma tentativa compulsiva de “recuperar” o que foi perdido. Ela afirma que, “quanto mais a pessoa perde, mais ela tenta se recuperar, criando um ciclo de dependência emocional e financeira”.
Esse comportamento pode evoluir para um vício em jogo, o que requer acompanhamento profissional.
A matemática das apostas: sempre a favor das empresas
Admilson Alcantara, matemático e pesquisador de Estatística Aplicada na Universidade Estadual do Pará (UEPA), explica que as casas de apostas sempre têm uma vantagem matemática. As odds são manipuladas para garantir lucro para a plataforma, mesmo que o apostador tenha algum sucesso inicial.
“As odds são ajustadas para garantir que, no longo prazo, o apostador perderá mais do que ganhará”, afirma.
Além disso, Alcantara alerta que a expectativa matemática é sempre negativa para o apostador comum, pois a margem da casa favorece as plataformas de apostas.
O professor explica que a expectativa matemática, que calcula o resultado médio de uma aposta ao longo do tempo, sempre favorece as casas de apostas. Ele destaca que, mesmo que o apostador tenha sorte no início, a probabilidade de perdas crescentes ao longo do tempo é alta, devido à manipulação das odds.
Admilson também acredita que a educação matemática pode ser uma ferramenta poderosa para alertar as pessoas sobre os riscos das apostas online.
“Mostrar como as odds favorecem a casa e como a expectativa matemática é negativa pode ajudar os apostadores a tomar decisões mais informadas”, diz ele, enfatizando que a conscientização sobre esses riscos é crucial, especialmente para aqueles que já estão endividados.
O que diz a lei?
As apostas esportivas on-line foram autorizadas pela Medida Provisória 846/2018, convertida na Lei 13.756/2018, mas sem regulamentação até 2023. A Lei 14.790, de dezembro de 2023, estabeleceu as regras, incluindo a tributação para empresas e apostadores e a divisão da arrecadação. A legislação abrange apostas de quota fixa, eventos esportivos reais e jogos virtuais.
As empresas podem reter 88% do faturamento bruto para custear suas atividades. A arrecadação é dividida entre a Seguridade Social (2%) e áreas como educação, saúde, segurança pública, turismo e esporte (10%).
As empresas de apostas devem ter sede e administração no Brasil. Uma regulamentação futura do Ministério da Fazenda buscará prevenir crimes como lavagem de dinheiro e combater o jogo patológico.
Passo a passo para quem quer começar a sair das dívidas sem depender da sorte
Patrícia Camilo, especialista da Serasa em educação financeira, elenca algumas recomendações para quem busca colocar as contas em dia e sair da situação de endividamento:
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Organize sua realidade financeira: anote todas as receitas, despesas e dívidas. Comece levantando todas as suas dívidas, com valores atualizados, credores, prazos e taxas de juros. Liste também todas as suas despesas fixas (como aluguel, luz, água) e variáveis (como alimentação, lazer). Conhecer o tamanho do problema é o primeiro passo para resolvê-lo com clareza;
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Corte gastos desnecessários: separe suas despesas em essenciais e não essenciais e analise o que pode ser reduzido ou temporariamente suspenso. Gastos pequenos, quando somados, podem representar uma economia significativa no fim do mês. O objetivo é liberar parte do orçamento para começar a pagar as dívidas;
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Renegocie suas dívidas: entre em contato com os credores ou utilize plataformas para buscar ofertas melhores. Caso não seja possível quitar todas de uma vez, comece pelas que têm juros mais altos (como cartão de crédito e cheque especial) ou pelas que impactam diretamente sua qualidade de vida (como contas de energia, água e aluguel);
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Evite novos endividamentos: só assuma novos compromissos se tiver certeza de que conseguirá pagar. Uma dica também é evitar compras parceladas, uso do cartão de crédito e financiamentos;
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Busque renda extra de forma segura: invista em conhecimento, capacitação e alternativas reais de geração de renda;
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Crie o hábito de poupar: mesmo com pouco, comece a construir sua reserva de emergência. Esse valor protege contra imprevistos, evitando que você recorra a empréstimos caros ou a apostas em situações difíceis.