'Cidade Invisível': Cineastas e escritores abordam erros na adaptação de personagens amazônicos
A série da Netflix tem impulsionado a divulgação de 'Matinta', curta paraense lançado há 10 anos.
A série “Cidade Invisível”, sucesso da Netflix com personagens do folclore brasileiro que se envolvem em um enredo carregado de violência e mistério, continua dando o que falar. Cineastas e escritores paraenses apontam a abordagem equivocada de personagens do lendário amazônico, como o Boto que surge na praia de água salgada e o Curupira, que tem cabeça de fogo.
“O boto que a gente conhece é dos rios da região Amazônica”, aponta declara o cineasta Fernando Segtowick, diretor do curta-metragem paraense “Matinta” (2011) sobre o mamífero. “É uma coisa estranha pra gente ele surgir na praia do Rio de Janeiro. Mas não tenho muito o que falar do processo criativo de quem tá tocando a série”, completa.
“As produções de originais do Netfleix e das plataformas de streaming de maneira geral, são voltadas para um público grande, uma coisa comercial. Assisti a série, gostei, não tenho crítica à maneira com que foi feita, tecnicamente falando”, acrescenta Fernando.
Já o filho do escritor Walcyr Monteiro - autor do best-seller “Visagens e Assombrações de Belém”, falecido em 2019 - Átila Monteiro, destaca a importância da abordagem do folclore brasileiro, que envolve personagens amazônicos, como o Boto e o Curupira, com outros do folclore brasileiro, como Saci e Cuca.
“O lado negativo, é que eles (Netflix) dão versão deturpada do que a gente conta aqui, sobre o nosso folclore. O Boto aparece no mar e desaparece depois de engravidar as mulheres, mas a lenda não é nada disso. Ele sai uma noite do rio e se envolve com uma mulher em uma festa, que engravida, e nessa mesma noite ele desaparece. O Boto não é um Don Juan safado, ele é encantado”.
Ele também menciona a forma com que o Curupira é retratado: “Ele não tem cabeça de fogo, como na série. Essa característica é da Mula Sem Cabeça. O nosso Curupira tem cabelos cor de fogo. Ele não fugiria das matas pra cidade para virar alcoólatra, não abandonaria a defensa das florestas, não condiz com a lenda”.
Série tem impulsionado o curta paraense "Matinta"
Dira Paes em "Matinta" (Marcelo Lelis/ Divulgação)
O sucesso de “Cidade Invisível” deu um gás na divulgação do curta-metragem “Matinta”, produção paraense de Fernando Segtowick, de 2010, estrelada pelos atores Dira Paes e Adriano Barroso, que se envolvem em um triângulo amoroso. “Muita gente passou a ver o ‘Matinta’ e a comentar nas redes sociais sobre o filme”, conta o diretor.
“O Cidade Invisível parte do princípio que os seres são encantados convivendo no mundo de hoje, e o Matinta, é mais literal da lenda ribeirinha. São histórias diferentes, mas com o mesmo universo”, compara.
Assista "Matinta" aqui.
“Matinta” está disponível no Youtube, onde já ultrapassou 70 mil visualizações, e também no Curta Cinema. “As pessoas começaram a redescobrir (o filme) e a comentar em alguns podcasts, como sendo um bom filme feito por paraenses e com pessoas daqui. Dez anos depois, foi redescoberto por novos públicos. É legal que as pessoas possam olhar uma produção local. Isso é bacana”, comemora.
Produção
O fato do enredo de Cidade Invisível se passar no Sudeste brasileiro, apesar da abordagem sobre lendas amazônicas, chama a atenção. Fernando questiona o território e a representatividade do povo nortista na próxima temporada da série. “Fizeram algo mais voltado para o público nacional e internacional. Está fazendo sucesso dentro e fora do Brasil. Na próxima temporada será bacana se tiver alguém na equipe de Belém ou do Norte, seja na equipe técnica ou no elenco”.
“Em termos gerais, existe uma tentativa de plataformas de streaming de fazer conteúdo de narrativa universal, mas com característica local para vender no mundo inteiro. Eu vi que esse conteúdo traz exatamente essa fórmula. Como ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’ que fez sucesso nos anos 80 com pitada nordestina”, compara a cineasta paraense Jorane Castro.
Ela questiona a ausência de leis sobre a propriedade intelectual do conteúdo audiovisual produzido por plataformas de streaming. “As plataformas estão chegando no Brasil sem que haja nenhuma regularização, não pagam imposto algum, mas recebem muito porque exigem o direito patrimonial eterno sobre o filme”.
Folclore
Apesar das distorções na retratação dos personagens do imaginário popular amazônico, Átila Monteiro reconhece a importância de difundir o folclore brasileiro: “É muito importante que as nossas lendas sejam contadas e recontadas aqui e no exterior. Meu pai já falava: a gente comemora o Halloween, importado dos Estados Unidos, mas não celebra as lendas amazônicas. E, por isso, ele criou o ‘Cortejo Visagento’ aqui em Belém”, recorda.
Ele conta do esforço dos descendentes de Walcyr Monteiro em manter viva a obra do autor, especialmente nas redes sociais, como no perfil do Instagram @lendasdaamazonia. Walcyr deixou mais de 19 livros publicados sobre folclore, temas regionais e lendas amazônicas, resultado de pesquisa e documentação.
Já o escritor Alfredo Guimarães Garcia critica o que ele denomina de “folclorização da Amazônia”. “Quase sempre se tem ideia que a Amazônia é a pátria das Cobras Grandes, das Amazonas, das Matinta Pereras, enfim, de toda essa mística criada em torno dela. Para a literatura, essa é apenas uma das faces da região amazônica, que enfrenta desigualdades sociais, miséria, criminalidade elevada, queimadas e que está sofrendo fortemente com a pandemia pelo novo coronavírus.”
“A Amazônia que mais se aproxima do real, pelo viés da memória, historicamente, é a que vem sendo declinada nas obras de escritores regionais, como os paraenses Dalcídio Jurandir e Benedicto Monteiro e os amazonenses Márcio Souza e Milton Hatoum. Esses autores mereciam um olhar apurado desses grandes produtores do audiovisual”, aponta.
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