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Quadrinho faz releitura de obra de William Blake 'O Matrimônio de Céu e Inferno'

Enéias Tavares e Fred Rubim transformam clássico do poeta inglês em um gibi policial ambientado no Brasil atual

Agência Estado

No fim do século 18, o poeta e pintor inglês William Blake (1757-1827) recebeu uma visita nada convencional: um demônio apareceu para ele e transmitiu-lhe pílulas de sabedoria para que ele compusesse uma espécie de Bíblia ao contrário. Uma de suas mais influentes obras, O Matrimônio de Céu e Inferno inspira agora um quadrinho homônimo com roteiro de Enéias Tavares e arte de Fred Rubim, pela Avec Editora.

A releitura situa a obra na São Paulo contemporânea, com uma trama assumidamente tarantinesca, acompanhando quatro histórias simultâneas que se cruzam. Amarante é um assassino de aluguel que se vê forçado a matar uma criança; Verônica é uma prostituta reunindo dinheiro para sustentar sua família; Dani é uma pintora que trafica drogas para financiar sua arte; e Santos é o pastor de uma igreja neopentecostal que estende seus tentáculos pelo mundo.

"Como cada um deles dialoga com uma dimensão presente na obra de Blake: a violência; o desejo e o erotismo; a arte e o visionarismo; e a corrupção religiosa", analisa Enéias Tavares em entrevista.

"Fazer Amarante gostar de cinema, Verônica de música, Dani de arte e Santos de literatura me deu a oportunidade de usar essas predileções para referir aqui ou ali à presença de Blake nessas mídias", acrescenta o roteirista e escritor, que leciona literatura na UFSM e estudou a obra poética e pictórica de Blake em seu doutorado.

A arte de Fred Rubim traz uma linguagem urbana para o mundo transcendente de Blake, e reforça os contrastes dos personagens por meio de uma paleta de cores diferente para cada um, que ele vai misturando à medida que as linhas se cruzam.

"O que procurei fazer foi trazer a essência da pintura de Blake para essa linguagem das HQs em uma atmosfera mais urbana, pegando referência até do grafite", conta Rubim, que se orientou por meio de fotos de São Paulo tiradas por Tavares.

"Meu traço é mais enxuto, não tenta ser realista, e acho que isso de certa forma jogou ao meu favor. Pude fazer uma interpretação do significado da obra dele sem cair na tentação de imitar seu estilo."

Para possibilitar os encontros entre personalidades tão heterogêneas, somente uma cidade como São Paulo poderia se oferecer como palco para o quadrinho. "Precisávamos de uma cidade brasileira que seria uma Babel moderna", conta Tavares.

A conciliação de opostos, tão presente na escolha do cenário, pulsa nos temas trabalhados por Blake. "Isso não apenas dialoga como é necessário ao Brasil dividido e conflituoso em que nos encontramos", afirma o roteirista. "Blake nos aconselha que a solução está na união de opostos, no diálogo dos antagonismos, na proximidade de energias antitéticas."

Rubim confessa que a vanguarda representada por Blake e sua presença na cultura pop são fatores que tornam mais difícil a sua transposição para a contemporaneidade. "Ele estava à frente do tempo, tanto que até hoje reverbera em outras mídias. Intimida um pouco quando você vai adaptar uma obra dele, que não só pintava como inventou seu próprio método de impressão".

O trabalho tipográfico de Blake foi inovador tecnicamente, mas também é considerado um dos precursores das HQs pela combinação única de imagens e palavras em suas gravuras - não por acaso, ele influenciou autores. Alan Moore faz referência a seus poemas em V de Vingança e Watchmen, e Blake é um personagem em Do Inferno e Angel Passage.

Bill Everett (1917-1973), parceiro de Stan Lee na criação de Namor e Demolidor, dizia ser descendente de Blake. Um dos versos mais conhecidos dele está em O Matrimônio de Céu e Inferno: "Se as portas da percepção fossem purificadas, cada coisa se revelaria ao homem como é: infinita." Esse trecho inspirou o título de um livro de Aldous Huxley, As Portas da Percepção, e o nome da banda The Doors.

Se o Blake tipógrafo foi um dos pioneiros da autopublicação, hoje seus descendentes artísticos estão lidando com o mesmo problema que ele enfrentou durante a vida - vale lembrar que ele morreu no anonimato. "De alguns anos para cá houve um crescimento na produção e no público das HQs nacionais, mas ainda não é suficiente para criar um mercado tão profissionalizado", lamenta Rubim.

"Esse ano as editoras estão com o pé no freio por conta da crise, todo o cenário incerto. Muitos quadrinistas estão tendo que procurar outros meios de se lançar, como autopublicação e financiamento coletivo, como o próprio Blake, que teve que inventar o próprio método de produção." A história se repete, afinal.

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