Crítica de arte enaltece novo livro do escritor paraense Salomão Larêdo
Na análise da especialista, o livro “Onze Bandeirinhas” tem um enredo impactante e muito emocionante
A professora e crítica de arte Rita Pacheco Limberti publicou uma crítica sobre o novo romance ficcional do escritor paraense Salomão Larêdo: “Onze Bandeirinhas”. A obra, que é ambientada no bairro do Guamá, foi amplamente elogiada na análise da especialista, a qual salientou o grande impacto e emoção do enredo.
Confira abaixo, na íntegra, a crítica de Rita Pacheco Limberti.
Onze Bandeirinhas” é mais um livro de Salomão Laredo que vem somar-se ao vasto conjunto de sua obra, precioso inventário da rica cultura da Amazônia do Pará. Não é, contudo, apenas mais um livro, pois surge (embora saibamos que não é o último) como o ápice das representações da cultura local. Tamanha agudeza foi atingida pelo movimento espiralado que a sequência de obras de Laredo foi descrevendo, partindo de um trato mais abrangente de sua terra e de sua gente, até atingir o âmago de sua expressão: o bairro do Guamá.
Assim, “Onze Bandeirinhas” nos traga, desde o intrigante título, a uma experiência bastante realística, da pulsante vida deste universo sui generis revelado pelo autor. De modo mágico, somos conduzidos pelas ruas e lugares daquele mundo à parte, acompanhados de personagens tão reais quanto oníricas, que nos ombreiam no fio frenético da narrativa, sussurrando histórias e causos surreais. Vêm do cotidiano miúdo os fatos de suas existências míticas, que nos envolvem em um ambiente etéreo, onde o real vibra em suas falas, delegadas por Salomão.
Não é Laredo nem é o autor que fala; é Salomão, o homem comum, local, familiar, um deles, cuja autoridade nos deixa ouvir as vozes num discurso direto desconcertante. Desse modo, ele se esgueira no arcabouço narrativo genialmente construído num cotejo mitológico, que, ao mesmo tempo que revela denotativamente os fatos, joga um véu conotativo e ambíguo sobre seus efeitos e desdobramentos. As falas diretas das personagens descortinam, na superfície, registros de fala peculiares e absolutos, enquanto no nível mais profundo, lexical, refratam as significações e estilhaçam os valores. Paradoxalmente, Laredo, o autor e Salomão são todos eles, na medida em que, ao fazer esse raro registro dos falares, os cria, recria, põe em ata.
As personagens, desbocadas - porque não têm boca, não têm voz -, ao falar são desbocadas: escancaram as minúcias das misérias humanas, desumanas, sacanagens. A realidade nua e crua se revela placidamente… como as águas do grande rio…
Num ímpeto, buscamos atualizar e propor caminhos epistemológicos para a leitura, transpondo a tênue linha que divide a transgressão e a legitimação da linguagem e dos fatos. É impactante a formal sutil com que o autor realiza uma categorização de saberes, valores e crenças até então invisibilizados, sem desqualificar a legitimidade dos processos de construção da cultura. Na práxis, apresenta outros modos de existir; apresenta memórias de si mesmo e apresenta em si mesmo o que cada personagem sente em sua vivência impensada: a existência no entrelugar, nas fissuras e nos esgarçamentos, que oscilam de um lado a outro, amealhando, no final, um acordo discordante, tragicamente harmonioso. O livro é um tratado ruidoso da decadência de padrões e da fragilidade da tradição, o qual erige um raro agenciamento das camuflagens relações cotidianas e das astúcias das manifestações identitárias.
Vislumbra-se, assim, um acesso possível à identidade contemporânea, resultante dos contornos fugidios de subjetividades antagonicamente reais e míticas, via astuta de acesso ao real, sem mediações pudicas, um convite a uma experiência sensorial e concreta. A escrita de Salomão é esta: corajosa, impactante, emocionante; seu texto nos coloca dentro de outras peles, de outras carnes, de outras identidades. Seu texto nos surpreende de nós mesmos quando, em algum furtivo momento, flagramos em nós pedaços ocultos dos seres que nos causam repulsa.
A narrativa, de ritmo psicodélico, modula-se esgueirando-se nas temporalidades da escuta: histórias contadas, reais ou inventadas, perguntas sem respostas, respostas ao nada constituem rico material estético. Ao escrever uma história insólita, o autor cria deslocamentos e lapsos de tempo, os quais compõem uma linguagem cronológica anticonvencional. Ao produzir esses deslocamentos temporais, Laredo instaura uma nova dimensão de sua escuta: a de um personagem. Assim, tem-se uma história “líquida”, alinear, descontínua e coerente que fala das assimetrias sociais, de subalternidade, de narrativas marginais, sem atas ou arquivos, nos limiares do Humano. Deslocar o tempo é recurso primoroso, pois cria um presente atemporal por meio de ecos e ressonâncias, memórias discursivas, orais, que desorientam as balizas de inteligibilidade temporal vigentes.
Além do tempo e a memória, Laredo articula múltiplas relações com a mitologia e a imaginação. Ao mesmo tempo, proporciona-nos interessantes experiências sensíveis nas quais deparamos com nossa própria história no interior de um mundo longínquo jamais visto, um lugar mítico e real, simples e absolutamente complexo, inextricável, como o nome “Onze Bandeirinhas”... O autor, onisciente, faz que não sabe de nada... e deixa as histórias brotarem aos borbotões...os personagens dominarem as cenas... sua escrita funda uma dramaturgia reorientada pela sensibilidade e pelas relações intersubjetivas. O livro é um material estético inestimável erigido sobre o fulcro cultural contemporâneo do riquíssimo Guamá.
Ao fechar o livro, sinto-me cúmplice, amiga, guamaense. Tão guamaense que não sei explicar com exatidão como surgiu o nome “Onze Bandeirinhas”.