“Herança(s) maldita(s)”: essa expressão, direta ou indiretamente, tem sido utilizada pelo presidente Lula (PT) para se referir ao governo de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL). Evidenciam-se, assim, as grandes dificuldades do governo federal em começar a tocar sua própria agenda de trabalho a partir do legado fortemente destrutivo deixado pela gestão anterior.
Por óbvio, a percepção da chamada herança maldita também é uma ferramenta retórica para Lula reforçar junto a seus apoiadores e à sociedade como um todo sobre os desafios de se avançar nas pautas mais relevantes do país, em alguns setores que ficaram potencialmente destruídos, como meio ambiente, educação e saúde. Houve uma destruição de boa parte dos serviços públicos e várias instituições sofreram ataques constantes do ex-presidente e de vários de seus então ministros. A tragédia humanitária com os índios Yanomami, em Roraima, ilustra com cores tristes essa perspectiva.
Uma das “frentes de batalha” mais evidente é a questão que envolve o Banco Central e as taxas de juros praticadas no Brasil. Em declaração recente, Lula criticou fortemente a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) de permanecer com a taxa Selic – taxa básica de juros – em 13,75% ao ano.
Por tabela, embora o indicador fosse, de certa forma, esperado, o comunicado do Banco Central destacou que as expectativas de inflação pioraram em decorrência do aumento de gastos públicos no início de governo, em especial com os programas sociais. Tal comportamento do BC irritou profundamente o presidente da República, com a grande probabilidade de se manter os juros altos por mais tempo para tentar conter a inflação.
O embate de Lula com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, ficou mais claro na esfera pública por dois aspectos: a instituição é independente e seu comandante tem um mandato pré-definido; e o fato de Campos Neto ter sido indicado pelo ex-presidente Bolsonaro. No primeiro quesito, é um fator teoricamente positivo pensar em um Banco Central independente, com um olhar técnico e com prioridade de combate à inflação. Mas o segundo aspecto inviabiliza, de certa forma, o primeiro neste cenário: o presidente do BC tem mantido forte atuação política, participando de grupos de WhatsApp com ministros do governo Bolsonaro, tanto há alguns anos como em 2023, e por ter declarado publicamente seu voto no então candidato à reeleição.
Esse tipo de conflito é um pouco comum na realidade brasileira, pois é aceso um alerta de que os juros altos podem representar uma “frenagem” para a economia – e Lula busca mecanismos para tentar “reanimar” a atividade econômica no país, muito prejudicada pelos contextos de pandemia, da guerra no Leste da Europa e das ações equivocadas de Bolsonaro e do ex-ministro Paulo Guedes.
Dessa forma, nesse lidar constante com heranças malditas e com a necessidade de trabalhar as pautas econômicas em paralelo com os avanços sociais, Lula e seus ministros Fernando Haddad, da Fazenda, e Simone Tebet, do Planejamento, precisarão de “jogo de cintura” nesses debates com o Banco Central e materializar a agenda econômica pensada pelo atual governo. Não deve ser um caminho fácil, mas é plenamente viável.
É fundamental, para um país, virar determinadas páginas de sua história.