O caso João de Deus, as Cassandras da vida real e o silêncio em Solnit Natasha Vasconcelos 18.12.18 11h49 Rebecca Solnit é jornalista, escritora e historiadora feminista estadunidense (Reprodução) Ritual de segunda: pego o celular ou computador e corro para os sites feministas para saber o que tá rolando no mundo, uma escolha política de perspectiva. Entro no Justiça de Saia, da Promotora do Ministério Público de São Paulo Gabriela Mansur, e logo me deparo com "Após relato de abuso sexual, mais mulheres acusam João de Deus", o médium da Casa Dom Inácio, em Abadiânia (GO). Se ignorarmos o fator religiosidade, crença e cura este é mais um caso revoltante de mulheres que sofrem diariamente com a naturalização do assédio sexual como desenrolar das relações de poder falocêntricas. Acrescentar todos os outros fatores deixa evidente a construção social e o impacto das instituições na reprodução de padrões sociais patriarcais. Nas poucas horas do ritual de segunda, li aproximadamente 15 notícias sobre o caso de João de Deus. É preciso ter estômago e sanidade mental para aguentar os relatos. Interpretá-los a luz da teoria político-social feminista chega a ser uma tarefa automática porque silenciamento é basicamente o plano de fundo das análises sobre violência contra mulheres. São muitas as perguntas que cabem na repercussão desse caso, mas tem uma que precisa ser discutida amplamente: por que temos mais 330 mulheres desacreditadas no caso João de Deus? É possível que praticamente todas as teóricas feministas respondam direta ou indiretamente essa questão, mas particularmente gosto da forma como Rebecca Solnit constrói o silencimento histórico de mulheres e é a partir de sua concepção que busco propor formas de analisar esse descrédito. Em "Os homens explicam tudo para mim", a autora dedica um tópico sobre a "Síndrome de Cassandra", irmã de Helena de Tróia, a profeta transformada em escrava sexual e assassinada junto com Agamenon. Para Solnit a credibilidade é um poder fundamental na guerra dos sexos e é comum vermos a sociedade contestando os fatos, a capacidade de fala e o próprio direito de falar das mulheres que quebram o silêncio. Gerações de mulheres já foram chamadas de delirantes, confusas, manipuladoras, malévolas, conspiratórias, congenitamente desonestas, e muitas vezes tudo isso de uma vez só. Esse tópico sobre a "Síndrome de Cassandra" traz uma reflexão sobre a origem do diagnóstico de histeria que no senso comum se aplica às mulheres incoerentes e estressadas, que comumente é direcionada às mulheres porque acreditava-se ser condição ocasionada pelo deslocamento do útero. Solnit destaca que esse problema teria origem num abuso sexual sofrido na infância. O que conecta com a militância feminista da época que trabalha o sexo como arena de poder passível de abusos. Encarar sexo como arena possibilita definição de violações, e consequentemente seu reconhecimento e isso descortina as relações de poder e seus abusos, em todas as esferas. O termo assédio sexual, segundo Solnit, é cunhado em 1986, estamos, portanto, tratando juridicamente como um abuso nas relações de poder há apenas 32 anos, se tomarmos essa mesma data como ponto de partida. No Brasil, a tipificação do assédio sexual como crime se dá apenas em 2001 e limitava-se ao ambiente de trabalho, ainda sustentando o fetiche de manter intacto os abusos na esfera doméstica. Quando a Lei Nº 13.781/2018 é promulgada para tratar dos casos de importunação sexual vem também para contemplar casos de assédio para além do ambiente de trabalho. EM DOIS MIL E DEZOITO. Trouxe um pouco desse debate apenas para ilustrar o que a autora nos lembra a todo instante: ainda estamos numa era de batalhas sobre a quem será concedido o direito de falar e o direito de merecer crédito - e na guerra dos sexos a credibilidade é um poder fundamental. Direito de falar e credibilidade é também o que a Autora trata em "A mãe de todas as perguntas", que é um livro sobre o silêncio, ou melhor, sobre o silenciamento histórico e violento de mulheres. Mas Rebecca nos diz que a fala e a coragem são contagiosas. E é pra isso que destaco essa leitura urgente. Em tempos de denúncia de assédio sexual midiatizado, ele volta a ser urgente, sem nunca ter deixado de ser. Gosto de imaginar a ruptura do nosso silêncio como redistribuição de audibilidade, credibilidade, valor, participação, poder e direitos, tal como Rebecca nos mostra. A quebra do silencio é fundamental para a construção da pauta da violência, silenciamento e apagamento como uma questão pública, é necessário dar voz ao problema para transformá-lo em direito. A ilustração disso é de agosto de 2017 quando um homem ejaculou no pescoço de uma mulher no ônibus e o magistrado da ocasião considerou que não houve violência, nem ameaça, nem constrangimento e caracterizou a prática como contravenção penal. Sabemos que esse não é um caso isolado e que o silêncio das vitimas faz com que cresçamos sabendo que estamos vulneráveis a esse tipo de violência por sermos mulheres. Dar voz a esses e tantos outros abusos das relações de poder é a nossa cartada de transformação cultural, social e política, essa é a forma primária de ação e que deve vir acompanhada da escuta qualificada e valorizada de outras mulheres e de nossas crianças. Fica, portanto, para reflexão o desafio que é feminismo enquanto pergunta e como exercício rotineiro de encontrar novas respostas, aquelas que não querem que encontremos e muito menos que verbalizemos. Precisamos problematizar o silêncio seus reflexos e consequências na perpetuação da violência contra mulher, porque é difícil falar sobre o que não foi dito e conseguir pautá-lo como uma questão pública, ser voz para o problema, dar voz a ele, transformá-lo em direito, transformar a cultura, o espaço púbico e privado. Convido vocês a romperem as muitas formas de silenciamento que somos ‘orientadas’ a adotar como se educação fosse, mas na verdade são instrumentos de perpetuação de violência contra mulheres. Para saber mais sobre assédio sexual no ambiente de trabalho: Para saber mais sobre assédio sexual em locais públicos: Para baixar um guia ilustrado com dados e conceitos necessários para o entendimento e enfrentamento de violência sexual contra a mulher, acesse Think Olga. 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