Sobre raízes brasileiras, auto-estima e autonomia A falta de consciência do alicerce de nosso povo é visível na auto-estima baixa e carência de auto-confiança, camufladas pela necessidade de auto-afirmação e arrogância Lena Mouzinho 30.05.19 18h00 A Natureza é plena de sábios mestres. Árvores, por exemplo, são seres que transitam em seu ciclo vital amando muitos outros e por isso foram eleitas minhas mestras para aprender a Amar. Descobri um dia porque algumas delas não se sustentavam e caiam jovens ainda, sem resistência à ação das chuvas e ventos. Foi o momento em que aprendi mais sobre a importância da raiz principal para a integridade, o desenvolvimento da autonomia em cuidar-se e para sua realização como ser arbóreo. Raízes são radicalmente - de raiz mesmo - fundamentais. Suas principais funções são de sustentação e auto-nutrição. Uma planta só se desenvolve sobre o solo, depois que sua raiz principal cresce de dentro da semente para o interior escuro, aconchegante e nutridor da terra. Quando sementes se abrem, uma radícula desperta em busca de condições para existir, penetrando verticalmente e fundo no solo. Em ambiente natural, a fome de vida tem energia suficiente para fender a rocha, se necessário, e buscar água e nutrientes. É a partir dessa raiz que se formam as raízes secundárias laterais e uma complexa rede, conectada com o corpo arbóreo, que se desenvolve sempre, para dar conta de realizar-se, esculpir-se, produzir, reproduzir-se, enquanto “responsabiliza-se” por satisfazer suas necessidades, numa ação vital que resulta na satisfação das necessidades de muitos outros seres. Em comunidade (a floresta) cada árvore vai viver essa jornada com apoio mútuo, entre elas e com outras espécies de vida. Quando é retirada de seu meio, os desafios tornam-se mais complexos, mas ainda assim, ela vai exercer sua autonomia e persistir em viver. Quando os primeiros momentos dessa vida acontecem num pequeno vaso e a raiz principal encontra o obstáculo impermeável do fundo de plástico -ou de outro material inadequado - começa a atrofiar-se: sua necessidade de expandir-se a faz enrodilhar-se em espirais ascendentes, dividindo-se em raízes secundárias precocemente e tornando-se superficial. Ao ser transplantada para o solo do jeito em que se encontra, aquela planta perdeu em parte sua autonomia para sustentar-se e nutrir-se. Fixa-se insegura, na medida em que cresce, e torna-se dependente da rega pela chuva ou por humanos. Um dia cai sem que ninguém entenda por que. RAÍZES HUMANAS Com humanos acontece de forma semelhante. Depois da primeira fase de desenvolvimento, totalmente dependentes, somos capazes de desenvolver autonomia para auto-cuidado e auto-realização, em relação. Nossas raízes principais estão em nossa ancestralidade. Em todos os que vieram antes de nós e nos legaram bagagem genética e cultural. Somos, cada um, síntese diferente de muitos povos e culturas. Somos mestiços pois, vidas plurais se fundiram e resultaram em nossa singular existência. No Brasil, somos essencialmente produto da fusão de muitas nações indígenas, com diversos povos africanos, com muitos povos europeus - predominantemente portugueses - mas, nossas raízes originais se espraiam por todo o planeta. Tais raízes nos alimentaram e inscreveram-se em nós, na memória individual e coletiva, no corpo-e-na-alma. Foi e é a história destes povos que construiu o alicerce de nossa identidade pessoal e coletiva. Por estas profundas raízes somos um ser ligado a toda a humanidade. Hierarquizar pessoas e povos de nossas origens é fruto da ignorância e da incompreensão. Compará-los, ídem. Não existem povos nem culturas superiores ou inferiores. Existem grupos humanos com histórias, contextos, jornadas diferentes, em estágios de desenvolvimento diferentes e com formas diversas de se encaminhar, naquilo que cada cultura concebe como a melhor forma de desenvolver-se. Aquilo que não faz sentido na cultura do outro, tem um sentido que desconheço. Em nossa percepção limitada, somos mesmo capazes de avaliar se um povo é superior a outro? E de concluir o que é ser civilizado? Temos o direito de impor aos outros o que definimos como a forma de viver correta? E qual a motivação real para investir tempo e energia nesta empreitada? Para avaliar quem é maior, melhor, mais evoluído, superior? Para que? Qual a utilidade de definir de quem é a hegemonia? Quando olhamos para a busca insana que atravessou a história humana, nos damos conta do quanto destruímos enquanto buscávamos supremacia uns sobre os outros? O movimento do Universo é inteligente. Quem se considera avançado e evoluído precisa na dança da vida, ter como par, de vez em quando e com muito respeito, alguém a quem julga inferior e atrasado. Não para reeditar a ação do colonizador que desqualifica, invade e impõe seu modo de vida ao outro. Mas, para lembrar do essencial esquecido, para aprender aquilo que ainda não foi aprendido. Para checar a aprendizagem de conviver. CONECTANDO NOSSAS RAIZES EM NÓS O como nos relacionamos com nossas raízes principais determina o como nos relacionamos conosco e com o coletivo. Quando honramos e acolhemos com satisfação nossa bagagem genética (cor de pele, tipo de cabelo, traços físicos e faciais) e cultural (arte, religião e outras expressões), somos gratos a quem nos legou. E nos sentimos à vontade em nossos corpos e com eles no mundo. A tendência é que nos respeitemos com carinho e cuidado (auto-estima) e nos deixemos livres para desenvolver nossos potenciais. O sentimento de dignidade faz-nos movimentar pela satisfação de nossas necessidades no mundo, de forma autônoma, solicitar apoio quando necessário e apoiar os outros. Sim, pois essa forma de nos ver reflete-se no respeito à integridade dos outros: são meus semelhantes. Com o outro sou capaz de desenvolver laços de confiança e parceria e me conectar generosamente, para que nos apoiemos mutuamente e para que, juntos possamos resolver nossos dilemas coletivos. Honrar nossas raízes portanto alicerça a vida comunitária. Quando aprendemos a ver nossas raízes com o olhar que herdamos do colonizador – são inferiores, feias, sem inteligência, incultas, pobres e mal educadas - aprendemos a nos envergonhar de nossas origens, a negá-las até “esquecê-las”. “Caboco”, “índio” , “negro” tornam-se expressões de desqualificação. Ser inferiorizado dói. Passamos a desprezar parte fundamental do que somos pois a ela atribuímos inferioridade. Por medo de olhar no espelho que o outro é e correr o risco de identificação, aprendemos a segregar, abandonar, excluir das mais diversas formas, ignorar a existência até a indiferença. Resultado? Os povos das florestas que resistiram e sobreviveram às várias formas de violências, lutam hoje contra o risco de extinção. A cor da pele e o que é sagrado, em pleno século XXI, ainda é justificativa para liberação de diversas tendências violentas. O contexto propicia rejeição, ódio a si mesmo, ódio entre pessoas, fragmentação nas relações e muitas lesões no tecido social. A falta de consciência do alicerce de nosso povo é visível na auto-estima baixa e carência de auto-confiança, camufladas pela necessidade de auto-afirmação e arrogância (“você não sabe com quem está falando”). Visível na febril busca de “aparentar ser” para assemelhar-se a aspectos de quem é considerado “gente superior”. Tangível na expectativa e dependência da figura do “colonizador”, que nos faz eleger e idolatrar representantes políticos, mitos de diversas cores partidárias, que acenam assumir a posição de pai e salvador. Nítida na medonha luta cotidiana para um não ficar por baixo do outro, nos jogos para tirar proveito e provar “esperteza”, na falta de respeito, de empatia, de compaixão, de confiança, na dificuldade em dialogar e em construir o “poder com os outros”. Pois estamos fragmentados interna e externamente. Urge integrar nossas raízes em nós. Conhecer as muitas narrativas disponíveis e buscar curiosamente as não disponíveis, para aprender a valorizar e respeitar nossos ricos potenciais, a compreender o como estamos e construir nossa dignidade como povo. Reconhecer as ricas peculiaridades de nossos ancestrais em nós, nos ajudaria a nos recompor como pessoas inteiras, a compor a vida comunitária e a nos integrar humanamente. Só amamos o que buscamos conhecer. 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