Sem exceção, as declarações sobre direitos humanos aprovadas no século XX adotam o respeito máximo à dignidade humana como princípio-princípe à proteção das pessoas, sem discriminações de qualquer natureza.
E para preservar esse princípio tão caro, mas também sem perder a perspetiva do regime de liberdade pessoal - campo ilimitado das razões e desrazões humanas - as declarações colocam em evidência o princípio da inocência como uma das condições ao efetivo respeito à dignidade humana.
Esse princípio que é tão especial - e aqui e ali muitos o invocam dependendo da conveniência - mas ao que parece na Era da Internet (com a velocidade e instantaneidade que as coisas acontecem e são reproduzidas nas redes sociais), o primeiro princípio não é a presunção da inocência, mas o da culpabilidade até que se prove ao contrário.
Por certo, ninguém imaginava que essa inversão de valores seria possível. Ou se alguém imaginou, não o disse na época própria, pelo menos na perspectiva que pretendo dizer agora. Contudo, era previsível, considerando que, como sói acontecer, vez por outra a natureza humana revela uma certa espécie de autofagia.
Sim, era previsível. Basta lembrar o ambiente da guerra fria entre EUA x URSS no período de 1945-1991: a Arpanet (Advanced Research Projects Agency Network) - o protótipo de internet inventada em 1969 - já nasceu com o objetivo da espionagem, embora oficialmente tenha sido justificada como meio de facilitar o fluxo de informações sigilosas no Departamento de Defesa dos Estados Unidos sobre ameaças ataques dos soviéticos.
Então, foi isso: a Arpanet, em princípio, foi um instrumento decisivo nas rápidas tomadas de decisões de Estado. A internet, agora passa a ser o tribunal moral ou o tribunal de ética de todos contra todos, a partir da universalização do acesso às facilidades de comunicação e informações oferecidas virtualmente.
Era previsível, sim, que isso fosse acontecer no mundo virtual, o mundo onde muitos se apresentam com suas verdades absolutas e como se fossem a própria Thêmis (a deusa grega da Justiça, filha do “deus do Céu” (Urano) com a “deusa da Terra” (Gaia), proferindo implacáveis “julgamentos” nas redes sociais.
Muitas das vezes, a internet e suas redes sociais se transformam num tribunal de ética, num tribunal moralista, num tribunal de caráter mais devastador e inquisidor do que, na maioria das vezes, a própria condenação mediante um justo processo judicial.
Cotidianamente são divulgadas centenas de milhares de informações nas redes sociais (e são reproduzidas sem crivos reais) violadoras dos direitos humanos, especialmente os direitos à imagem, à honra, à privacidade e à vida privada. Ressalvadas os casos reais, há uma rede de sensacionalismo que se alimenta e que retroalimenta uma rede de fofocas.
E as fofocas reiteradas são o prato feito, diariamente, do tribunal de ética da internet. Verdade ou fake, caiu nas redes sociais, o tribunal moralista da internet entrou em ação.
Tudo isso provoca a disrupção dos princípios inerentes à dignidade humana, porque são ações que, além de violarem direitos à correta informação, também atentam contra os direitos humanos da personalidade.
As declarações internacionais sobre direitos humanos, em defesa do princípio da presunção da inocência, apregoam que toda pessoa tem direito em plena igualdade às garantias mínimas, por exemplo, de não ter violados seus direitos naturais.
Por certo, nenhuma sociedade livre pode admitir a restrição ao direito de expressão e de informação; contudo, esse direito não pode ser vala comum daquelas justificativas da liberdade de informação e de expressão como tribunal de ética na internet em desrespeito à dignidade humana.
Assim, quando as constituições dos Estados nacionais e quando os protocolos sobre direitos humanos apregoam a proteção das pessoas sem discriminações de qualquer natureza, essas normas não se voltam apenas contra os governos; mas, também, se destinam às pessoas individualmente, à sociedade e suas instituições civis.
Por esse e outros motivos, no mundo da internet, já não basta apenas o direito de retificação ou de resposta à pessoa por informações inexatas ou ofensivas; antes, essa é uma questão de conscientização individual e coletiva quanto ao adequado e responsável uso da internet.
Além disso, é preciso colocar em prática a Constituição, quando promete que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
Quando pessoas se consideram a deusa da justiça, transformando a internet e suas redes sociais em tribunais de sua de ética,os direitos humanos e as liberdades fundamentais não passam de retórica, que o Estado não consegue proteger.
OBS Permite-se a utilização deste artigo exclusivamente para trabalhos acadêmicos e científicos, desde que citados o autor e o meio de divulgação, nos termos da Lei 8.610/1998.