Quantas vezes já ouvimos a expressão: a vida é minha, faço dela o que eu quiser... Ou ainda: a vida é sua, estrague-a como bem entender… São expressões ensimesmadas que revelam características das relações humanas no ambiente de uma sociedade que arrasta o sentido das liberdades apenas às personificações individualistas.
Nas duas expressões está presente o problema da liberdade que, na modernidade e na pós-modernidade, é visto sob plataforma de direito mas também num horizonte filosófico.
Como plataforma de direito, as liberdades compõem a cesta mínima da cidadania; portanto, lembra que as liberdades individuais são limitadas pelas liberdades coletivas. Como horizonte filosófico, o sentido das liberdades deduz o permanente desafio à sua ampliação conceitual como uma necessidade requisitada pelo inquietante espírito humano.
A correria das coisas do nosso cotidiano, quase sempre, nos desliga do valor da liberdade. Mas se tirarmos um pouco o pé do acelerador, se pensarmos um pouquinho mais, se olharmos bem as coisas ao nosso entorno, facilmente iremos identificar que tudo gira e decorre do exercício das liberdades.
Assim, existem as liberdades naturais (aquelas próprias da imanente natureza humana e das coisas) e as liberdades formais, aquelas que são reconhecidas pelo Estado, outorgadas ou conquistadas. Destas, vou me ocupar em outra crônica, com o desafio de entender o problema da liberdade no pensamento de Hannah Arendt, a filósofa política que tratou da liberdade política no século XX, a partir da privação de direitos do povo Judeu no regime nazista.
Hoje, nesta crônica histórico-filosófica, quero tratar do problema da liberdade no pensamento de Santo Tomás de Aquino, então fundado em premissas do direito divino, do direito natural e do direito positivo, este, como decorrência daqueles.
Na atualidade, o problema da liberdade humana - seja na perspectiva das liberdades individuais (apontadas como garantias fundamentais) seja na perspectiva das liberdades difusas (adotadas como direitos da coletividade) - tem estrita relação com o problema da liberdade no pensamento teológico- filosófico de Santo Tomás de Aquino, apesar dele ter vivido na Era medieval, ambiente histórico do sistema feudal, período onde a liberdade do homem comum e do homem escravizado era inexistente.
No livro “Sobre o que nos perguntam os grandes filósofos", Leszek Kolakowski (historiador e filósofo contemporâneo com doutorado pela universidade de Varsóvia, Polônia) dedica um capítulo específico ao pensamento teológico de Santo Tomás de Aquino, que viveu no século XII, entre 1225 a 1274, na denominada baixa Idade Média, historicamente definida entre os século X e XV.
O polonês Kolakowski interpreta que Santo Tomás de Aquino foi um pensador para além da sua época, porque procura explicar as “duas ordens” (a temporal e a eterna) que marcam a natureza humana.
Mas, no livro não há referências explícitas ao tema da liberdade no pensamento de Santo Tomás de Aquino, por isso, vou me ocupar nesta crônica filosófica desta questão. E quero fazê-lo também porque o tema da liberdade, na perspectiva filosófica, repercute no seu caráter ou natureza como direito natural, depois como direito social e finalmente como direito fundamental é, por fim, como uma dos objetivos centrais e permanentes do humanismo.
O capítulo dedicado a Santo Tomás de Aquino é o que abre a obra. Permito-me à transcrição de um trecho da obra para melhor entender o objetivo desta crônica histórico-filosófica sobre a liberdade em Santo Tomás de Aquino:
- “Toda obra de Santo Tomás de Aquino consiste na reabilitação da ordem natural, temporal, embora ela esteja sempre subordinada à ordem eterna, aos desígnios de Deus.” “(...) “Também em Tomás”, identifica-se que o “bem tem inclinação inata para se expandir e para criar mais bem” ( 2009, 0.13, 14).
O trecho aponta para uma questão que é tão antiga quanto atual: a relação entre o homem (na ordem natural-temporal) e Deus (na ordem Espiritual ou eterna), com a prevalência da ordem Espiritual sobre aquela, daí porque “o Espírito provê tudo o que temos: o corpo, a vida e a capacidade intelectual", conforme exprime o pensamento tomasiano (p. 14).
O filósofo Kolakowski interpreta que o filósofo-teólogo Tomás de Aquino relaciona o problema da liberdade ao livre arbítrio. Isso porque, no livre arbítrio, o ”mal moral é onipresente", como consequência da ausência do bem,pois a existência é boa em si mesma.
Aqui temos a nossa companheira de sempre: a eterna dupla face da natureza humana que sempre repercute nas escolhas, portanto, na liberdade subjetiva às tomadas de decisões - decisões que também repercutem nas liberdades objetivas como uma espécie de causa e efeito, como naquela concepção doutrinal do budismo humanista.
Isso quer dizer mais ou menos o seguinte: a boa liberdade implica abstenção da má conduta, porque abster-se da má conduta significa respeitar a sua própria história, a história da família e honrar a integridade dos outros.
A dualidade boa moral versus mal moral é visível no pensamento do também teólogo-filósofo Santo Agostinho (354-430 D.C.), quando na obra “Confissões” afirmou que, em si, o mal é apenas uma consequência da ausência do bem. "O mal não existe em si, é o resultado da ausência do bem moral”.
Acho que Santo Agostinho disse tudo nesta questão. Pensemos bem agora: se a boa existência fosse sempre a marca virtuosa da conduta humana, o mal moral (ou mal ético) não ganharia espaços na arte de viver as expressões das liberdades como virtudes.
Então, partindo dessa concepção, penso que é possível afirmar, filosoficamente, que a liberdade é um bem natural que designa a natureza humana.
Até aqui falamos de liberdade enquanto valor atrelado ao livre arbítrio. Claro, essa perspectiva sempre existe e está presente em toda a existência humana.
Mas no terreno da vida real, naquela quadra histórica medieval, como Santo Tomás de Aquino concebe o direito à liberdade, por exemplo, da pessoa escravizada com o seu “senhor” ?
Acho que a Summa Teológica pode nos oferecer algumas respostas, porque nela encontramos bases dogmáticas do catolicismo e das filosofia escolástica, que se referem à liberdade como direito divino, como direito natural e como direito positivo. O problema da liberdade é tratado, por exemplo, na Questão 52.2 (“Se o escravo pode contrair matrimônio sem o consentimento do senhor”) e na “Questão 65.2 (“Se é lícito aos pais açoitar, ou aos senhores, os escravos”).
A Questão 52.2 (“Se o escravo pode contrair matrimônio sem o consentimento do senhor”) deduz que a liberdade era uma concessão e não um direito natural que beneficia qualquer pessoa indistintamente.
Vamos saber as razões. Antes, observamos bem: estamos tratando da realidade histórica do século XIII, visto que a Summa Teológica foi escrita entre os anos de 1265 a 1273. Por isso, precisamos nos transportar àquela época (uma espécie de volta ao passado) como se lá fosse o nosso tempo de vida. Isso é fundamental para que não pereçamos acríticos. Dito isto, vamos ao ponto.
Considerado como propriedade de quem o comprou - assim pensava e escreveu Santo Tomás de Aquino - “o escravo é coisa do senhor!”, por isso, “ O escravo está obrigado a obedecer ao senhor.”
Isso indica que Tomás de Aquino defende a servitude (ou servidão) do escravo ao seu senhor. E defende mesmo. Aquela era a concepção do direito positivo (à propriedade de escravos) de sua época medieval, portanto, a antítese da liberdade como direito natural de qualquer pessoa.
O escravo era “coisa do senhor'', mas, se o senhor permitisse o matrimônio, ganhava uma espécie de alforria. “O escravo que contraiu matrimônio com permissão do dono, deve por isso mesmo deixar de fazer o serviço que lhe manda ele e cumprir o dever conjugal para com a mulher. pois, tendo-lhe o senhor permitido contrair matrimônio, entende-se que também anuiu a todas as exigências do casamento”, escreveu Santo Tomás de Aquino.
Escreve ainda:
- “Em relação ao ato matrimonial e às funções naturais, o marido e a mulher são considerados iguais e isentos das condições da escravidão”, afirma Tomás de Aqjino, quando discute “se a escravidão pode sobrevir ao matrimônio por ter-se o marido vendido a outrem como escravo”, ou seja, a lbertação da escravidão pelo matrimônio.
Na concepção de Aquino, o pressuposto da aquisição da liberdade pelo escravo, através do casamento, mistura fundamentos do direito do direito divino, do direito natural e do direito positivo.
Ele escreve que “A escravidão é de direito positivo”, visto que o direito à propriedade era uma decorrência do difeito natural, por isso mesmo, não podia prejudicar o cassamento do escaravo, ali concebido como um direitos divino e d natural:
- “A escravidão é de direito positivo. Ora, o matrimônio é de direito natural e divino. Logo, como o direito positivo não pode contrariar o natural nem o divino”, por isso, ainda que a escravidão seja um atributo do direito positivo, de outro lado, uma vez contraído o matrimônio “o escravo não está sujeito ao senhor a ponto de não ter liberdade de comer, dormir e praticar atos semelhantes exigidos pelas necessidades do corpo, sem os quais a natureza não pode subsistir”, porque o matrimônio é condição à perpetuidade a espécie humana.
Intrigante e instigante o pensamento teológico filosófico de Santo Tomás de Aquino sobre a aquisição da liberdade do escravo através do matrimônio. A liberdade era dada ao escravo pelo casamento (como pressuposto direitos divino e natural), mas a perderia em caso de fraude: “(...) o marido que se vender como escravo a outrem, em fraude da esposa, sofrerá ele o dano, perdendo o dom inestimável da liberdade.”.
O positivismo é uma forte aspiração no pensamento de Tomás de Aquino, coisa bem visível quando também considera que nada fora daquilo que é lícito poderá obrigar o escravo a atender ao seu senhor: “Escravo está obrigado a obedecer ao seu senhor em tudo o que este lhe pode licitamente mandar”, escreveu no Art. 2 da Questão 52, para em seguida, dizer que a lei a justiça é que devem decidir ao final sobre o direito de propriedade e o direito à liberdade do escravo: “(...) o legislador deve velar pelo modo com que cada qual usa do seu direito.”.
A questão 65.2 (“Se é lícito aos pais açoitar, ou aos senhores, os escravos”) aborda o direito ou de punir o escravo. Como princípio geral, o filósofo afirma que “Parece que não é lícito aos pais açoitar os filhos, ou aos senhores, os escravos, (...) Logo, nem os pais devem açoitar os filhos, nem os senhores, os escravos”.
Contudo, adverte que o senhor do escravo pode impor castigos e prisões, mas dentro da lei e da justiça. “E portanto, encarcerar ou prender alguém, de qualquer modo, é ilícito. (..) Só o pode aquele de quem essa pessoa depende” ou “por ordem da justiça ou como pena, ou como precaução para evitar algum mal”.
Depois dessa viagem ao pensamento daquele que foi declarado “doutor da teologia católica” pelo Papa Pio V no Século XVI, posso concluir assim: a ideia de liberdade em Tomás de Aquino, de um lado, é definida pelos fundamentos dos direitos divino e natural relativo ao direito de propriedade sobre a pessoa escrava, então tida como uma mercadoria.
De outro lado, a lei e a justiça (ideias positivistas) são exigidas, por Santo Tomás de Aquino, como critérios para punir ou encarcerar alguém. A lei e a justiça, portanto, são parâmetros à propriedade e à liberdade consequente sobre a pessoa escravizada.
Esse foi um dos contributos de Santo Tomás de Aquino à construção das liberdades humanas.