Reforma previdenciária no Brasil: necessidade real e perspectivas de direitos (parte I)
No governo Lula, a primeira reforma previdenciária que misturou regimes
No governo Lula, a primeira reforma previdenciária que misturou regimes
Nas últimas três décadas, os governos e o Congresso Nacional implementaram pelo menos cinco relevantes reformas previdenciárias envolvendo o Regime Próprio (típico do servidor público titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações), e o Regime Geral de Previdência Social (específico do trabalhador segurado).
Agora, o recém empossado governo Bolsonaro retoma plano da reforma específica da previdência básica, notadamente no que se referem à idade para a aposentadoria, ao tempo de contribuição e quanto alguns benefícios de prestação continuada que atualmente não exigem carência para obtenção – reforma que os governos Lula, Dilma e Temer defenderam e tentaram politicamente, mas não conseguiram aprovar.
Uma reforma na estrutura previdenciária representa a reforma na estrutura da proteção social do próprio Estado, porque é relativa aos fundamentos do Estado-providência .
Por isso, qualquer projeto precisa ser bem esclarecido quanto às suas necessidades e vantagens à sociedade, não podendo ser visto exclusivamente sob a ótica do Estado econômico.
Pela relevância temática, inauguro a minha coluna online com uma série de cinco artigos sobre a reforma previdenciária no Brasil: necessidade real e perspectivas de direitos.
O primeiro da série cuida das grandes reformas previdenciárias implementadas nos dois governos do Lula (Partido dos Trabalhadores).
A compreensão de que a reforma da previdência consiste na reforma estrutural do Estado-providência passa obrigatoriamente pela natureza da previdência enquanto direito fundamental, destinada que é, ao lado dos direitos à saúde e à assistência social, à implementação do princípio da proteção social brasileira diante dos riscos sociais e dos riscos laborais.
Quando a Constituição de um país adota um regime de direitos e garantias fundamentais o objetivo é, do ponto de vista da razão de existir do Estado, comprometê-lo à efetividade desses direitos, o que na prática equivale garantir o pleno exercício dos direitos pelos cidadãos.
Um bem estruturado e efetivo regime de garantias e direitos fundamentais é, por isso mesmo, a base dos regimes democráticos não retóricos, porque os governantes não poderão, sob quaisquer pretextos, desvirtuar as autoridades moral e normativa da Constituição.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, alberga um relevante regime de direitos e garantias fundamentais no Título II, onde inclui no Capítulo I dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, dentre outros, os direitos à previdência, à saúde e à assistência (Art. 6º) exatamente o tripé estrutural da Seguridade Social (Art. 194) criada para implementar os objetivos da ordem social brasileira: o bem-estar e a justiça sociais (Art. 193) que são concebidos para o objetivo maior, a proteção social brasileira.
O regime de direitos e garantias fundamentais é tão relevante, tanto que a Constituição também adota duas cláusulas de barreiras para impedir a violação ou retrocesso desses direitos fundamentais sociais: uma, proíbe quaisquer propostas de emendas tendentes a abolir os direitos e garantir individuais (Inciso IV, § 4º, Art, 60)
Outra, no inciso III, Art. 85, tipifica como "crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra o exercício dos direitos sociais.". Isso significa, no sistema democrático de freios e contrapesos, que o Presidente da República pode sofrer o processo de impeachment perante o Senado Federal, nos termos do Art. 52, I e do Art. 86 da Constituição Federal de 1988.
Por tudo isso, o regime de direitos e garantias fundamentais no Brasil é formatado com natureza de cláusula pétrea. Por outras palavras: nenhum ato de governo pode excluir ou retroceder direitos sociais da ordem jurídica brasileira.
Isso é o que existe hoje no regime constitucional brasileiro quanto à natureza e proteção aos direitos sociais fundamentais: previdência, saúde e assistência social, incluídos nessa categoria de direitos e protegidos pela cláusula pétrea, não podem ser violados por atos de governo, nem podem ser excluídos por leis infraconstitucionais.
Mas, na prática, outra tem sido a lógica governamental - realidade que denuncia uma "anomaliae legalis" iniciada no primeiro governo Lula (2003-2006), quando empenhou as forças políticas de governo e de sua popularidade à aprovação da Emenda Constitucional nº 41 em dezembro de 2003.
Por essa emenda constitucional, o governo Lula e o Legislativo de então vincularam o cálculo dos proventos de aposentadoria do servidor público estatutário ao teto da aposentadoria do Regime Geral de Previdência Social.
Embaralharam-se, no particular, o teto das aposentadorias dos dois regimes previdenciários (o Próprio e o RGPS), isso sem mexer nas alíquotas de contribuições do servidor público, que eram e ainda são superiores às dos trabalhadores segurados do RGPS.
Note-se que, pela Emenda Constitucional nº 20, de Dezembro de 1998, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, havia a garantia de que:
"Os proventos de aposentadoria e as pensões, por ocasião de sua concessão, não poderão exceder a remuneração do respectivo servidor, no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão."
A reforma previdenciária, quanto ao teto da aposentadoria do servidor público, também criou a contribuição sobre aposentadoria e pensões concedidas pelo Regime Próprio, sem a mesma equivalência aos segurados do RGPS:
Incidirá contribuição sobre os proventos de aposentadorias e pensões concedidas pelo regime de que trata este artigoque superem o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.
Portanto, a EC nº 20/98 manteve a garantia à aposentadoria do servidor público estatutário limitada à remuneração respectiva no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria, enquanto que a EC 41/2003 configurou retrocesso ao estabelecer o teto do RGPS aos novos servidores públicos, embora contribuintes do Regime Próprio de Previdência.
Com a limitação do valor da aposentadoria do servidor público estatutário pelo teto máximo do RGPS, o governo Lula promoveu a primeira grande reforma nos respectivos regimes previdenciários.
Aquela reforma, a rigor, preparou o caminho para a segunda grande reforma previdenciária implementada no governo Lula, já no segundo mandato (2007-2011) , estabelecendo os critérios de idade e tempo de contribuição às aposentadorias no serviço público, alterando substancialmente os artigos 37, 40, 195 e 201 da Constituição Federal.
Sobrevieram as reformas relativas à aposentadoria compulsória por idade, com proventos proporcionais, com a Lei Complementar nº 152 de 2015, a aposentadoria compulsória do servidor público em geral, de que trata a Emenda Constitucional nº 88, de 2015, ambos no governo Dilma Roussef, e ainda a reforma de benefícios previdenciários trazida pela Lei nº 13. 467/2917, atrelada à reforma trabalhista, e na lei 13.329/2017, que adota novos critérios à arrecadação previdenciária no âmbito do trabalho temporário, estas duas últimas, no governo Temer.
No próximo artigo, abordarei a segunda reforma previdenciária do governo Lula implementada pela Emenda Constitucional nº 47/2005, relativa aos tempos de contribuições e à idade mínima no serviço público à aposentadoria com proventos integrais.