Às vezes nos deparamos – você já parou para pensar nisso? – “brigando” com Deus. Não pelas idênticas motivações da luta de Jacó com Deus, às margens do ribeiro Jaboque, durante a noite até o amanhecer, para obter uma bênção especial.
A bênção especial desejada era – esse é o princípio bíblico – por uma razão especial: o sincero arrependimento pelo seu ato consciente por ter usurpado a primogenitura de Esaú (seu irmão mais) com a ajuda da mãe aproveitando-se da cegueira de Isaac, seu pai, conforme relatado no livro de Gênesis 27:34-36.
O excerto bíblico, relativo à luta de Jacó com Deus, é encontrado também em Gênesis 32:22-32, quando o Anjo de Deus disse a Jacó: “Então disse o homem: Seu nome não será mais Jacó, mas sim Israel, porque você lutou com Deus e com homens e venceu”.
A história bíblica de Esaú e Jacó — o escritor Machado de Assis a parodiou no romance-ficção “Esaú e Jacó” (1904), com seus personagens, irmãos gêmeos Pedro e Paulo, que começavam a se desentender no ventre da mãe e viveram como inimigos políticos no parlamento — revela uma das piores mortificações da alma: a miserável inveja ou a inveja miserável, nos dois sentidos mesmo.
O caso de Esaú e Jacó – aqui também cabe lembrar o predecessor Caim e Abel, que culminou no crime de fratricídio deste e ainda a ficção de Machado de Assis – mostram que a moralidade humana é sempre vulnerável.
Vulnerável às tentações decorrentes da inveja e da usura; Vulnerável às necessidades materiais, que podem levar a pessoa ao desespero e à venda da própria dignidade; vulnerável às permanentes tentações do poder corrompido – poder que invariavelmente passa por cima de qualquer um como um trator compressor de rolo de aço, aquele usado para concretar o asfalto e vulnerável às manipulações políticas de grupos ideológicos em diversos ambientes sociais, institucionais ou corporativos – manipulações que, de forma direta ou velada, visam prejudicar aquele que não faz parte dos mesmos objetivos e a eles se opõe.
Por certo que tudo isso resulta das fraquezas humanas, ambiente que será – se não houver a necessária resiliência – uma espécie de bebedouro ou fonte ao agigantamento da perniciosa inveja e ao consequente aprisionamento às malícias da usura decorrentes do poder e dinheiro, quando viciados.
A consequência disso é simples: a “briga” com Deus – motivada pela inveja e pela usura predominantes na alma – nos rouba a felicidade, haja vista que se perde a simplicidade e a humildade, estas, as principais alicerces da sabedoria.
Pelo menos é o que pode ser deduzido do que disseram importantes filósofos do estoicismo: Sêneca, “o trabalhador das virtudes” (3 a.C a 65 d.C) e Marco Aurélio, o “rei filósofo” (121 d.C a 189 d.C) , exemplos pesquisados por Ryan Holiday e Stephen Hanselman, na instigante obra “A vida dos Estóicos – a arte de viver, de Zenão a Marco Aurélio”.
Sêneca construiu sua filosofia no valor espiritual que reside na simplicidade, buscando entender os conflitos do ser humano entre o desejo à tranquilidade da alma e as tentações corrompidas pelo desvio da conduta ética. Na visão do filósofo, a tranquilidade da alma decorre da sabedoria (a qual gera a felicidade) que o homem sempre quer alcançar, porém, pode não alcançá-las se for dominado pelas próprias fragilidades.
Marco Aurélio, que adotou como máximo para a sua vida a vida ética, pela pelo compromisso de sempre fazer a coisa certa, rejeitava toda espécie de sofismo e dizia aos seus liderados e aos senadores romanos: “Não perca mais tempo falando sobre como é ser um bom homem. Seja Um”.
Desde sempre o homem luta consigo mesmo (com as próprias imperfeições, fraquezas e vícios), mas tendencialmente atribui culpas a Deus.
Ora, aqui se trata de uma luta de foro íntimo, relativa à própria existencialidade. Não é, nessa perspectiva, uma luta contra Deus, pois Deus é mais do que um aliado, é o provedor da felicidade humana, para quem assim O aceita com leveza e com a tranquilidade da alma.
Mas, o homem também luta com o semelhante lado a lado por bons propósitos e contra o semelhante, às vezes, por objetivos inconfessáveis.
No segundo caso, torna-se o lobo do próprio homem, naquele sentido teológico do que falou Jesus aos seus discípulos (vos mandarei entre lobos, por isso, orai e vigiai) ou, ainda, na perspectiva política e sociológica da ausência de Estado e das leis, de que trata o filósofo Thomas Hobbes: “(...) o homem é o lobo do homem”.
Tudo, ou quase tudo isso, está enraizado naquela característica da natureza humana, aquela que revela o desejo por qualquer espécie de poder e, nessa condição, afloram em sua mente e coração os sentimentos da inveja e da usura.
Às vezes, então, à toa ficamos brigando com Deus, porque achamos que merecemos mais do que temos; porque merecemos tanto quanto o outro, ou porque merecemos muito mais do que o outro .
É uma espécie de ”briga” ou revolta íntima contra Deus, mas que, no fundo, consiste num tipo de inveja desnecessária, à medida que, cada um, possui um peculiar dom especial – um dom que, no entanto, precisa ser descoberto e lapidado como aquela mais preciosa jóia da vida.
Por isso, qualquer briga com Deus é – a bem da verdade – uma infantilidade ou tolice humana. E por quê? Porque o valor inerente a cada pessoa é insubstituível, enquanto que a inveja – aquele desgosto causado pela felicidade ou pelo sucesso de outrem — é uma espécie de veneno que contamina nossas virtudes.
Diante das nefastas consequências que a inveja e a usura causam à tranquilidade da alma, penso que uma chance real para evitar a briga tola com Deus pode ser naquele concelho de Marco Aurélio: “Não perca mais tempo falando sobre como é ser um bom homem. Seja Um”.
Por outras palavras, aquela mensagem seria mais ou menos o mesmo que deixar um alerta às pessoas nos dias atuais: é preciso lutar, com todas as forças da mente e do coração contra a natureza perniciosa da inveja e da usura, porque elas sempre estão à espreita dos vacilos humanos.