Como será a previdência social do futuro ?
A reforma prepara a transição do RGPS ao regime de capitalização individual
O indiano Amartya Kumar Sen – prêmio Nobel da Economia (1998) e Prêmio Humanista Internacional da International Humanist and Ethical Union (2002) sobre o seu intenso trabalho em economia do bem-estar – escreveu que
“na literatura da economia tradicional, a pessoa é vista como maximizando a sua função de utilidade, que depende apenas de seu próprio consumo e que determina todas as suas escolhas”.
A afirmação parte daquilo que definiu como “bem-estar egoístico” - aquele que a pessoa acredita que pode ser conseguido apenas com o próprio esforço e que também “depende apenas do seu próprio consumo” – consiste na negação do “espírito cooperante” de uma economia do bem-estar inerente aos objetivos coletivos da sociedade.
Adoto a assertiva do economista indiano como ponto de partida para tratar da proposta da reforma da previdência (PEC 06/2019) de introduzir, em caráter obrigatório, o regime de previdência capitalização individual tanto no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) quanto no Regime Próprio de Previdência Social (RPPS).
A previdência de capitalização
Na PEC, o regime de previdência de capitalização individual será “na modalidade de contribuição definida e de caráter obrigatório” e, se aprovada como proposta, “será implementado alternativamente ao Regime Geral de Previdência Social e aos regimes próprios de previdência social”.
A pessoa deverá pensar, primeiro e prioritariamente, em seu bem-estar pessoal. Disso decorre o caráter individualista desse regime.
A implementação do regime de capitalização garantirá apenas, de acordo com essa PEC, “o salário mínimo como piso”, que será a base da “sustentabilidade deste regime com contas individualizadas”.
Isso significa o seguinte: a garantia do “salário mínimo como piso” nada mais faz do que reproduzir o princípio minimalista (aquele que prioriza a garantia reduzida do Estado mínimo) da Constituição Federal de 1988, no inciso IV, Art. 7º, como direito social capaz e suficiente de “atender as suas necessidades vitais básicas e às de sua família como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo ”.
Mas a sociedade brasileira já viu que a ideia do salário mínimo nacional – para suprir todas as básicas necessidades humanas – é uma mera ficção jurídica, à medida que a realidade brasileira comprova, desde a vigência da Constituição, que o princípio constitucional do bem-estar e da justiça sociais (Art. 193, CF/1988) nem de forma mínima se efetivou.
A questão de fundo – e isso a sociedade precisa ter bem claro, pois vai lmpactar na segurança social – é a seguinte: a modalidade de contribuição definida por conta individualizada como um regime de previdência de capitalização, que o Estado brasileiro pretende adotar, significa a prevalência dos princípios do Estado econômico sobre os princípios ou Estado justiça.
A sujeição dos princípios sociais aos princípios econômicos implica na mudança substancial da concepção da proteção social então garantida pelo Estado para um modelo de economia de mercado. Essa mudança, que é de cunho neoliberal, começou com a EC nº 20/98 (governo FHC), foi bastante densificada pelas EC nº 41/2003 (governo Lula) e nº 45/2005 (governo Lula), e implementadas pela Lei ordinária nº 12.618/2012 (governo Dilma Rousseff) e pela Lei Complementar nº 151/2015 (governo Dilma Rousseff).
Nos últimos 21 anos, portanto, os governos brasileiros optaram pela progressiva retirada do Estado como garantista da proteção previdenciária. De 2008 até hoje hoje cada emenda preparou o caminho da seguinte.
E a atual PEC 06/2019, que vem na mesma ordem daquelas, prepara o caminho para a outra grande no âmbito da previdência social brasileira.
Substituição do regime geral pelo regime de capitalização.
“Propõe-se introduzir, em caráter obrigatório, a capitalização tanto no RGPS quanto nos RPPS”, anuncia a proposta da reforma previdenciária.
Seria o pontapé inicial para a substituição do regime geral pelo regime de previdência de capitalização individual? Ou seria apenas um regime paralelo ao regime geral?
Veja-se que a PEC dispõe que “será instituído novo regime de previdência social, organizado com base em sistema de capitalização”, enquanto que a Constituição federal de 1988 adota o regime de repartição, quando instituiu a seguridade social com natureza solidarista, uma vez que consiste e compreende “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.”.(Art. 194).
Por isso mesmo, no modelo constitucional atual, a seguridade social é “financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, (Art. 195). E também por isso a seguridade é o principal pilar para a implementação à efetividade do princípio da proteção social brasileira com pilares nos objetivos do bem-estar e da justiça sociais (Art. 192).
O regime de previdência de capitalização individual é o ambiente propício aos objetivos do “bem-estar egoístico” , de que trata Sen. Ou seja, é uma forte oposição aos objetivos do Estado do bem-estar coletivo típico do regime de repartição.
O regime de repartição importa que, desde a vigência da CF/1988, os benefícios previdenciários são garantidos e pagos, dentre outras fontes,:
→ a) com os recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
→ b) das seguintes contribuições sociais do empregador, incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; e
→ c) do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, mas não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social.
A livre escolha, pelo trabalhador, da entidade ou da modalidade de gestão das reservas individuais na capitalização em regime de contribuição definida, é outro elemento que indica a opção que o Estado brasileiro deseja para o futuro da sua proteção social previdenciária: a substituição do regime de repartição coletiva pelo regime de capitalização individual.
No presente e na prática, significará o progressivo fim do previdência social típica do Estado social ou Estado Justiça, cuja base fundamental é o princípio da solidariedade entre gerações.
Se adotado como proposto, o regime de previdência de capitalização individual poderá apagar tudo o que a sociedade brasileira conquistou através do regime de repartição coletiva, implementado no País desde a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934, que instituiu a “previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte”, conforme declarava a alínea h, § 1º, Art. 121 naquela Constituição.
Previdência híbrida: contribuição definida e contas nocionais
Por certo que a questão do regime de previdência de capitalização individual não é uma coisa nova, pois alguns países tornaram híbrido o seu sistema de proteção previdenciária, misturando a repartição (princípio do solidarismo entre gerações) e a capitalização individual (contribuição definida por conta individualizada).
Pelos termos da PEC, o Estado brasileiro ainda não acaba de vez com o regime de repartição do RGPS, mas objetivamente o Estado adere ao sistema híbrido: o regime de repartição e o regime de capitalização, quando prevê que o regime de capitalização será implementado “alternativamente” aos regimes próprio e geral.
Note-se que a proposta se reporta ao regime de previdência de capitalização como “novo regime de previdência social”. Então essa é mais uma clara manifestação de que, num futuro breve, o regime de capitalização irá substituir o regime geral e o regime próprio, pois assim dispõe o art. 201-A da PEC: “Lei complementar de iniciativa do Poder Executivo Federal instituirá novo regime de previdência social, organizado com base em sistema de capitalização”.
A base principal desse novo regime de previdência social será “na modalidade de contribuição definida, de caráter obrigatório para quem aderir (..)”, embora seja admitida a “capitalização em regime de contribuição definida, admitido o sistema de contas nacionais”.
Abro um parêntesis aqui: essa história da adesão faz lembrar o dilema recente que passaram os servidores públicos e magistrados da União, por causa do “gatilho migração” embutido no atraente benefício especial.
Esse benefício é garantido apenas àquele que renuncie o direito da aposentadoria do regime próprio para se submeter em definitivo ao teto do regime geral.
Essa verdadeira “armadilha legislativa” foi instalada no § 2º, Art. 3º da Lei 12.618/2012, sancionada por DIlma Rousseff (PT), sem quaisquer oposições de sindicatos ou associações das categorias afetadas, nem pela sociedade como um todo.
Hoje se percebe que aquele “benefício especial” foi a isca financeira utilizada pelo Estado brasileiro para dividir a categoria (fragilizando-a) entre optantes e não optantes, entre os que migram e os que não migram e, com isso, acabar num futuro bem próximo com os benefícios de aposentadorias e pensões pelo regime próprio e “jogar” toda a cobertura desses benefícios ao RGPS.
Agora, na proposta da criação do regime de previdência de capitalização individual o “gatilho adesão” está lá de novo: a “capitalização, na modalidade de contribuição definida, de caráter obrigatório para quem aderir”, conforme previsto no Art. 201-A da PEC. Significará, a adesão ao regime de capitalização, na modalidade de contribuição definida, implicará na renúncia aos direitos previstos no RGPS? O futuro dirá. Encerro o parêntesis.
O sistema de previdência híbrida prevê a capitalização pela modalidade de contribuição definida e a capitalização pelas “contas nocionais”, também conhecidas como "contas virtuais". Estas não serão de caráter obrigatório, mas aquelas serão.
O modelo de “contas nocionais” é importado dos regimes de capitalização da Suécia e da Noruega. Elas adotam critérios dos dois regimes: a metade de um e a metade de outro regime, uma espécie de meio termo entre os regimes de repartição e de capitalização.
Na prática, naqueles países, as contas nocionais funcionam assim: os trabalhadores da ativa, por suas contribuições individuais ao regime, financiam os benefícios de aposentados e pensionistas (igual ao regime de repartição), mas podendo haver contribuição do empregador.
As “contas nocionais” são administradas por bancos, seguradoras e fundos de pensões, e não pelo Estado como ocorre no regime de repartição.
Na modalidade de contribuição definida, através da conta individual, cada trabalhador planeja e financia sua própria aposentadoria. O trabalhador planeja e financia seu próprio bem-estar individual.
Benefícios do regime geral e benefícios do regime de capitalização
Então, tendo em vista a previsão de criação do regime de previdência de capitalização de caráter obrigatório e alternativo ao RGPS e ao RPPS, é bem apropriado afirmar que o regime de capitalização destina-se prioritariamente aos objetivos do “bem-estar egoístico”.
Isso é uma fácil compreensão porque, dentre das suas diretrizes nos termos da PEC em curso, será a contribuição definida pelo trabalhador ou pelo servidor que projetará a cobertura previdenciária, à medida que a PEC não prevê obrigatoriedade, mas apenas possibilidade de contribuições patronais e dos entes federativos.
Quando se comparam os benefícios e prestações previdenciários que a Constituição atual garante aos segurados obrigatórios da Previdência Social pelo regime de repartição (motivado pelo princípio da solidariedade social entre gerações). fica bem mais evidenciado que o Estado brasileiro pretende se afastar em definitivo da proteção previdenciária através do RGPS.
No regime de previdência de repartição, como o atual, são garantidas a cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; a proteção à maternidade, especialmente à gestante; a proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; o salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda e a pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, segundo previsto no Art. 201 e incisos.
Por seu lado, o regime de previdência de capitalização projeta os benefícios programado e não programados. Aquele será exclusivo à idade avançada, mas, visarão coberturas mínimas para a maternidade; à cobertura nos casos de incapacidade temporária ou permanente; e no caso de morte do segurado.
A cobertura de benefícios de riscos não programados, incluídos os de acidente do trabalho, poderá ser financiada “concorrentemente” pelo Regime Geral de Previdência Social e pelo setor privado.
Contudo, a ideia é atender apenas o piso básico, não inferior ao salário-mínimo para benefícios que substituam o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho, mas isto se for garantido na futura Lei Complementar de iniciativa do Poder Executivo federal.
Então, a previdência brasileira poderá será composta pelo regimes de repartição e de capitalização para os trabalhadores do setor privado e ao servidores públicos.
E a introdução, em caráter obrigatório, do regime de capitalização tanto no RGPS quanto nos RPPS é o aviso de que, no futuro, o regime geral será substituído pelo regime de previdência de capitalização individual.
A ideia finalística do regime de previdência de capitalização individual, para os próximos três a cinco decênios, é o fim do regime de repartição, este, cuja essência é o bem-estar coletivo.