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Autoridade, cargo e responsabilidade; poder e vaidade

Océlio de Morais

“O Príncipe”, um dos maiores  tratados políticos  de todos os tempos –  quem conhece a biografia do autor sabe disso –, é a obra-prima de Nicolau Maquiavel, escrita em 1513, portanto , 13 anos depois do descobrimento do Brasil, mas publicada em 1532, quando o autor já havia falecido – obra com dedicatória a Lorenzo II de Médici, o duque que havia concedido um cargo público a Maquiavel na cidade de Florença.  

Um parêntesis: Sobre os Médici de Florença  e o Brasil, permita-me sugerir a leitura da minha crônica “De como il Principe se relaciona com o Brasil”, que integra  o meu livro “A vida é uma Crônica” (Belém: Marques Editora, 2020, p. 47-52). Fecho o parêntesis.

Estive  relendo “O Príncipe” porque  nele sempre encontro respostas, quanto aos temas relativos à autoridade, à legalidade, à legitimidade e aos desvios do poder,  dada  sua surpreendente atualidade e aplicabilidade aos nossos complexos  dias. 

Esta pensata (reflexão com equilíbrio e prudência)  nasce a partir da  ideia lançada no capítulo X (“A natureza dos homens”) e no capítulo XXII, o qual discorre  sobre o “Proveito do poder”. Chamou-me a atenção, no capítulo “A natureza dos homens", o fato da natureza humana ser apontada como uma espécie de troca de favores entre exercentes de poderes políticos, quando afirma que é marcada “tanto pelos benefícios que são feitos como por aqueles que se recebem”. 

E no capítulo sobre “O proveito do poder”,  a atenção foi atraída pela trecho que revela o envaidecimento (espírito ou estado de arrogância)  pelo exercício do poder, quando  Maquiavel adverte ao Príncipe sobre o “ministro pensar mais em si do que em ti e que em todas as ações procura o seu interesse próprio (...) e nele nunca poderás confiar (...)”.

Vem daí a reflexão sobre as diferenças entre cargo e vaidade e sobre o efetivo exercício da autoridade e  a responsabilidade correspondente. 

Apenas para referenciar, recorde-se que o substantivo masculino “cargo”, na perspectiva  semântica,  tem sinonímia de função exercida no âmbito da administração pública ou na iniciativa privada. 

Autoridade, enquanto substantivo feminino, é decorrente de uma investidura legal e legítima, por isso expressa uma espécie de poder inerente àquele que exerce liderança ou comando, quando se pensa numa estrutura de Estado ou empresarial, embora a palavra também seja relativa à pessoa que tem domínio do conhecimento sobre determinada área técnica ou científica.

A perspectiva desta pensata não é sobre a expressividade jurídica com seus  conceitos  típicos dos diversos modelos de sistemas jurídicos mundiais. A ideia, por outro lado, é  falar sobre a virtude do cargo e sobre a nobreza da autoridade  em contraposição à vaidade perniciosa do poder, que  desvirtua o exercício da autoridade e pode levar à corrupção. Portanto, o viés da abordagem é filosófico.

Um filósofo falou  –  e já antecipo que adiro por completo à  magnífica reflexão  – que a autoridade deve ter como centralidade o amor e deve ser exercida sem violentar a justiça e sem ignorar o justo.

Essa lição, então, autoriza-me a dizer que a virtude do cargo está, necessariamente, relacionada à sua finalidade  teleológica, destinada  ao bem comum, o que exige – como correspondência lógica –  que o exercente do cargo, a autoridade não pense em si mesma e nem da função procure tirar proveito em benefício próprio. 

Quando a autoridade pensa em si própria  e  passa a vender as vantagens do poder em troca de outros benefícios do poder,  pode-se  entender que tal ocorre, sob o aspecto público, pelo aprisionamento  às amarras  do poder e, sob o aspecto subjetivo do próprio indivíduo, porque deixou-se dominar pela vaidade e usura  predominantes nas suas opções. Esse é um quadro onde a corrupção se sente bem confortável para agir livremente e espalhar suas sementes daninhas, porque é  o  campo fértil  para todas as espécies não recomendadas ao exercício da  vida pública.

Ora, o envaidecimento (que leva à soberba) é a perda da sensibilidade ética acerca da legitimidade, a qual  também é exigida  para o  legítimo exercício do poder. 

No entanto, o legítimo exercício do poder – mesmo aquele que decorre do amplo e dominante sistema social  – não pode prescindir da eticidade que envolve sentido responsável da autoridade,  pois o seu  valor maior repousa na honestidade da pessoa investida da autoridade, enquanto sua presteza fundamental será bem servir a sociedade. 

Além desse aspecto filosófico do entrelaçamento intrínseco entre poder, autoridade e  vaidade, há ainda outro relevante: o aspecto relacionado ao destino final da espécie humana,  objeto da doutrina teológica, a qual aponta que  todo poder emana de Deus (“omnis potestas est a Deo”), exatamente para mostrar que todo poder e autoridade na  Terra, ainda que encantem mentes e corações, sempre passam,  simplesmente também  porque são efêmeros.

Um  exemplo da efemeridade do poder temporal  é o primeiro encontro  de Jesus com Pôncio Pilatos (governador da Judeia entre 26 e 36 d.C), no início do julgamento de Jesus, quando o governador da JudAia quis intimidar Jesus, afirmando-lhe que tinha todo o poder para crucificá-lo ou salvá-lo. 

Recordemos o trecho bíblico, no relato do evangelista João (19:10-16):  – Disse-lhe, pois, Pilatos: Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar? Respondeu Jesus: Nenhum poder terias contra mim, se de cima te não fosse dado; mas aquele que me entregou a ti maior.”

Esse trecho bíblico real – julgamento injusto e arbitrário do poder corrompido dos homens daquele tempo, diga-se sempre  – é emblemático, pois confronta o Poder e Autoridade advindos de Deus  e o poder e a autoridade efêmeras da Terra. 

 Aliás, não é por acaso que Pilatos ( mergulhado em sucessivos atos de corrupção)  chamado pelo poder de central de  Roma, perdeu o posto de governador e –  envergonhado , derrotado,  desiludido e  desprezado pelos bajulçadortes de outrora e desiludido –   cometeu o suicídio. Verdadeiramente, todo poder e autoridade terrenos passam como o vento, passam com as horas, passam com o tempo.  

Por outro lado, o Poder e a Autoridade que vem de Deus são eternos. Observe-se bem a força  desse Poder e dessa Autoridade, nas palavras de Jesus, conforme o evangelista João (18:37):

– “Quando Pilatos perguntou a Jesus de onde ele era, Jesus respondeu: "O meu reino não é neste mundo". Pilatos então disse: "Logo, tu és rei". Jesus respondeu: "É como dizes. Eu sou rei. Para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade". 

Veja-se: o Poder e a Autoridade que vem de Deus são eternos, substancialmente porque a Autoridade que aprendeu a dar o testemunho da verdade expressa a sabedoria  –  “sabedoria que vem em nome de Deus para os homens que falam em nome de Deus”, como interpreta no “áudio nº 08 da “Comunidade Bíblia com Karnal”, o filósofo e historiador Leandro Karnal.

“Dar testemunho da  verdade” – por outras palavras, ser o exemplo da honestidade, do bem e das coisas justas –   é o pleno sentido do Poder profético anunciado por Jesus no exercício da  sua Autoridade também proteica.

Ao plano humano, “dar testemunho da verdade” , para a autoridade significa o atrelamento ao dever ético no cargo da sua investidura no poder .

Por essa perspectiva teológica, qualquer desvirtuamento do poder e do exercício da autoridade terrenos representa uma afronta ao Poder que a Autoridade Maior (Deus) concedeu ao homem para bem servir a todos.

Océlio de Morais