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Violência doméstica: psiquismo e cultura

Manoel de Christo

Todos os dias os veículos de comunicação de massa, incluindo as redes sociais, noticiam situações de violência doméstica. Entre uma e outra notícia, como não poderia deixar de ser diferente, alguma celebridade está às voltas com seu nome na boca de todos, em decorrência da violência cometida ou sofrida. Na semana em curso, a modelo, apresentadora, empresária mulher branca-loura e esposa Anna Hickmann e seu marido, o também empresário Alexandre Correa estiveram na passarela midiática desfilando sua relação conjugal. Uma cena cotidiana de um cenário catastrófico, medonho e inadmissível em pleno século XXI.

Quero trazer à baila um exercício de conexão entre o psiquismo e a cultura. Embora pareça óbvia, nem sempre essa conexão é tão facilmente realizada, pelo risco de se dissociar essas duas categorias de análise, dando ênfase mais a uma do que a outra. Então a primeira constatação é de que o sofrimento psíquico não se dá nem se explica pela individualidade em si, isso é de um reducionismo que às vezes ainda acomete a psicologia. Do mesmo modo que exaurir o fenômeno da violência à cultura, é andar claudicante e sem conectar com seu aparente antagônico que é a subjetividade.

Somos seres situados historicamente, produzimos e reproduzimos cultura, ideologia, valores, ciência, artes, enfim, sujeitos da história e produzidos por todas essas dimensões, numa dialética permanente. O fenômeno da violência tem muitas dimensões que se potencializam e estão articulados entre si. Casos de violência doméstica se configuram de forma complexa, com feixes entrelaçados e que precisam não ser concebidos como naturais ou normais, por serem parte de uma cultura patriarcal, machista, misógina e violenta. Todas as vezes que a violência contra a mulher é naturalizada, reproduz-se uma ideologia dominante que quer perpetuar seu status quo, e a naturalização é produto de um processo ideológico e psicológico de introjeção desses valores que anuviam o horizonte, gerando alienação. 

O psiquismo humano não existe num vácuo social, ele é enraizado na cultura, num contexto socioeconômico, ao mesmo tempo em que produz relações na microfísica do poder doméstico, na qual homens regidos pelo patrimonialismo e possessividade machista se acham detentores de um pessoa-objeto que estaria a sua mercê. Depois que a violência se torna pública e que a efetividade da lei Maria da Penha se mostra, apresentam narrativas encobertadoras e suavizadoras da agressão. É preciso entender o psiquismo dos envolvidos na situação que os aprisionou em relações sofridas. 

O combate à violência doméstica precisa contemplar o fortalecimento de políticas públicas que favoreçam o empoderamento feminino; que trabalhe nas escolas, igrejas, universidades, em toda a sociedade processos educativos transformadores da cultura e da subjetividade - dois pares siameses - para o nascimento de padrões relacionais que não coisifiquem o outro, pois essa subjetividade violenta, construída no conjunto das relações sociais, também irá produzir outros psiquismos violentos num corte transgeracional. Compreender a íntima relação entre psiquismo e cultura nos permitirá produzir individual e coletivamente novos patamares civilizatórios de uma cultura de paz.

Manoel de Christo