Há 16 anos na Corda do Círio, promesseiro cita resistências física e espiritual: 'Você sente a fé'
Símbolo da festa religiosa proporciona relatos emocionantes, mas também inspira cuidados físicos, espirituais e até de segurança pública com a proibição de objetos cortantes para dividir a corda após a procissão
Sob o sol de Belém, promesseiros disputam um lugar na corda do Círio que puxa a berlinda de Nossa Senhora de Nazaré. Fixar a mão neste símbolo é sinônimo de dever cumprido. Eles seguem a trajetória de pés descalços, corpos unidos e rostos com expressões de alegria e dor. Dentro do cordão humano deste ano - entre orações silenciosas, aclamações e gritos de “viva Nossa Senhora de Nazaré” - estarão devotos como Rodrigo Braga, que já vive esta emoção há 16 anos.
“Você sente a fé de milhões de pessoas. É algo muito forte, mágico. A corda treme na tua mão” - Rodrigo Braga, promesseiro.
Aos 28 anos, Rodrigo lembra que tudo começou com um voto para Nossa Senhora de Nazaré. “Fiz a promessa e pedi que meu pai fosse curado de dois cânceres. Prometi que, se ele fosse curado, eu iria na corda. Logo depois, não demorou muito, ele teve o diagnóstico de cura”, recorda.
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A promessa de acompanhar o Círio na corda exige dos romeiros, muito mais que devoção e gratidão, é preciso resistência física e espiritual para compartilhar com uma multidão as muitas dificuldades da longa jornada até a Praça Santuário.
“A gente fica totalmente espremido em um espaço mínimo. Em alguns momentos a gente nem toca no chão, vai sendo conduzido. Dá pra sentir todo o peso das pessoas à sua volta. Mas a maior emoção que eu sinto na corda é quando ela é levantada, a gente grita em louvor à Nossa Senhora. É um sentimento tão forte, parece que as forças voltam pro teu corpo. Aí ninguém aguenta e o choro vem que a gente nem sente”, diz emocionado o promesseiro.
O extremo esforço para manter as mãos atreladas, vai deixando marcas impressas com o suor e o sangue dos promesseiros na corda. Talvez seja esta “mistura humana-divina”, a responsável pelo poder milagroso, atribuído à corda, de curar doenças, o que faz com que seus pedaços sejam disputados no final da procissão.
De todos os simbolismos que cercam a devoção à Rainha da Amazônia, a corda é, sem dúvida, o mais expressivo, são poucos os que vão ficando pelo caminho, vencidos pelo cansaço. Mas a multidão, unida na fé inabalável, consciente de seu poder de resistência, chega ao seu destino para entregar a imagem de sua devoção de volta ao altar, na Basílica.
Quando surgiu a corda do Círio
A corda do Círio começou a fazer parte do Círio de Nazaré de forma inesperada, ainda no século 19. É que uma enchente na Baía do Guajará alagou a orla, na região do Ver-o-Peso, o que fez a Berlinda atolar. Até aquele Círio, a Berlinda era puxada por cavalos, mas os animais não conseguiram fazê-la desatolar. Um comerciante emprestou uma corda, que foi amarrada ao carro que transportava a Santa, e os promesseiros passaram a puxá-la. A partir daí, a corda virou uma tradição, parte essencial de duas romarias da festa: Trasladação, que ocorre na noite de sábado, e no Círio, na manhã de domingo.
São dois pedaços de corda, confeccionados em sisal torcido, cada um deles com 400 metros e 700 quilos. Achar seu lugar na corda não é tarefa fácil. “Tem toda uma técnica para conseguir entrar na corda, não é de qualquer jeito”, garante Rodrigo. Segundo uma pesquisa do Dieese, realizada durante o Círio de 2022, 70% dos romeiros que vão na corda têm experiência e já fazem isso há pelo menos cinco anos.
Os pesquisadores do Dieese calcularam que cada corda, seja no Círio ou na Trasladação, é levada por até 7.600 pessoas. Por questões de segurança, a corda é dividida em cinco estações, que auxiliam no fluxo na procissão. Até 2004, quando ocorreu o Círio mais longo da história, a corda tinha o formato de 'U', o que também foi alterado. No formato linear, a procissão flui mais tranquilamente, principalmente ao passar por ruas estreitas.
O estudo também concluiu que há uma diferença entre o romeiro que participa da corda da Trasladação e aquele que vai na do Círio. Na Trasladação, que é a segunda maior romaria da festa e chega a reunir mais de um milhão e meio de pessoas, predominam as mulheres em 55%, enquanto no Círio a corda é dominada por homens, cerca de 72%. Nos dois casos, o grupo da corda é formado por jovens, sendo que pelo menos 40% deles pagam algum voto relacionado com a saúde, seja a própria ou de algum familiar.
“O simbolismo da corda é evidente, ela representa a ligação com o sagrado, tocá-la é participar da fé do Círio de forma intensa. Ela é tão importante que levar um pedaço para casa é a obsessão de muitos, o que faz com que a corda raramente termine a procissão intacta. No Círio de 2017, a corda foi rompida e separada das estações às 9h50 da manhã, próximo à travessa Rui Barbosa. A partir daí, pedaços de corda eram disputados por várias pessoas, ao mesmo tempo em que a romaria continuava”, conta Braga.
Por conta dessa e outras situações, a Igreja e a Organização do Círio pedem que a corda não seja cortada antes de chegar ao destino final, onde o Arcebispo dá uma benção. Um dos objetivos da campanha é evitar que pessoas levem objetos cortantes até a corda, o que poderia causar acidentes. E também desestimular um comércio desrespeitoso. É que já houve relatos de pessoas que se organizaram para romper a corda, vendendo seus pedaços na internet por até R$ 200,00. Isso, claro, para não falar de brigas e disputas mais intensas pelos pedaços, que não são incomuns.
“A gente fica triste com essa situação, a festa não precisa disso”, diz Rodrigo, ao contar que ele é contra o rompimento da corda antes do destino final. “Algumas pessoas perdem o foco, esquecem que o Círio é uma festa religiosa. Não é para brigar por pedaço de corda, não é para xingar um ao outro. Nós temos que lavar nossa alma, sempre rezando”, completa o promesseiro.
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