Os muitos ‘Miltons’ chegam em Belém para brindar o Carnaval local
O paraense comentarista Milton Cunha ganha camarote na Aldeia Amazônica para celebrar momento carnavalesco e pessoal na sua cidade natal
O baphônico, faraônico, icônico, babilônico e mesopotâmico Milton Cunha chega a Belém para o Carnaval de 2025. Porém, ele não fará apenas uma participação; o paraense terá o camarote para chamar de seu.
“Camarotes Miltons – O paraensismo desfilando e encantando com Milton Cunha” será um espaço temático localizado na Aldeia Amazônica David Miguel, no bairro da Pedreira, que irá receber convidados, personalidades e autoridades nos dias 14 e 15 de março.
“Na minha juventude, uma escola levava o Joãozinho Trinta (carnavalesco) para fazer o Carnaval de Belém, o Laíla também (carnavalesco). Era grande e muito poderoso! Mas acho que vai crescer mais, porque além dos investimentos, a gente tem que bater na tecla da qualidade. Olha aí os compositores da Grande Rio, que são paraenses, tiraram dez e embalaram um desfile gigantesco. Ou seja, talento tem, e é esse talento que deve ser fiel às nossas origens. A gente sabe como dançar, cantar e esculpir um Carnaval. Isso é muito nosso. Eu acho que a gente não tem que querer ser o Rio de Janeiro, a gente tem que querer ter a grandeza do Rio de Janeiro, mas dentro de uma proposta artística muito pessoal, muito paraense. Eu acredito na assinatura, e se for poderosa, enquanto estética nossa, da floresta, do Pará, acho que a gente tem muita chance de emplacar como um dos grandes do Brasil”, analisa Milton Cunha.
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O artista, comentarista e carnavalesco ainda não tirou férias após o feriado de Carnaval. Ele fez dobradinha ao comandar os carnavais de São Paulo e Rio de Janeiro e agora cumpre agenda pelo Brasil, incluindo Belém. Seu jeito irreverente e cheio de tiradas pessoais foram destaque nas transmissões, mas a qualidade intelectual de Milton Cunha também se destacou.
O paraense, pós-doutorado concluído em 2017, em História da Arte, pela Escola de Belas Artes da UFRJ, com a pesquisa Narrativas Culturais no Carnaval de Rosa Magalhães, agora cursa o segundo pós-doutorado no Fórum de Ciência e Cultura do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o tema Boi de Parintins: Estrutura Narrativa e Patrimônio Cultural dos Povos da Floresta Amazônica. Além disso, ele é Mestre em Letras, na área de Ciência da Literatura (2006), e Doutor em Letras, com Teoria Literária - Ciência da Literatura (2010).
“Tem uma heteronormatividade que despreza a bicha muito pintosa, a pinta chega muito na frente e isso já faz o preconceito se estruturar todo em relação a você. ‘Ah, você é uma bicha pintosa, uma maricona dessas, só uma drag queen fazendo show em boate à noite maquiada’. Acho que eu nasci esse personagem, ele vem na frente, eu rebolo, danço e quebro tudo. Fica parecendo que quem é muito alegre não estuda, não trabalha, não é sério e não é confiável. Ver a vida pelo lado do bom humor, de um escracho, como eu vejo, é um problema porque as pessoas não te levam a sério, no sentido de partir dessa coisa positiva, alegre, celebrativa e comemorativa. Você não passa disso, é só uma bicha pintosa, que não estuda, não é competente e não pode ser líder. Acho que tem uma coisa da valorização do paletó e gravata, do personagem que vende esse tipo de conceito, que o oposto se aplica à bicha, que é: ‘Isso não passa de uma maricona enlouquecida’. Acho difícil para as pessoas entenderem uma pessoa que estuda muito, brinca muito e acorda cedo em uma segunda-feira às 8 horas da manhã e não acorda de penóar com plumas e uma taça de champanhe. Não! Acorda, pega o ônibus e vai trabalhar, é isso (risos)”, explica o comentarista.
A representatividade de Milton Cunha vai além da alegria e irreverência; ele consegue envolver quem gosta e quem não gosta do Carnaval. A qualidade intelectual e o bom humor fazem a diferença e ganham destaque junto com cada comentário carnavalesco. E não há quem não goste de ser entrevistado por ele. Este ano, ele foi homenageado pela bateria da Estrela do Terceiro Milênio, em São Paulo, que levou 230 "Miltons Cunhas" para a avenida.
“Quando eles me contaram que o enredo era a história da luta LGBT, eu fiquei: ‘Nossa, sempre quis fazer esse enredo’. Eu falava desse enredo no final dos anos 1990. A partir de 1999, comecei a falar que queria fazer na União da Ilha, chamava-se ‘O amor que não ousa dizer o seu nome’, que é a frase de Oscar Wilde (escritor irlandês). Eu ia pegar desde Safo de Lesbo (poetisa lírica com obras populares na Grécia Antiga, a história sugere que ela era gay), desde a Grécia. Eles não, eles pegaram com a chegada das caravelas e mostraram a luta no Novo Mundo. Achei bonito. Teve também a Xica Manicongo (considerada a primeira travesti não indígena do Brasil) aqui no Rio de Janeiro, na Paraíso do Tuiuti. Mas quando o carnavalesco me contou que a fantasia da bateria seria eu, fiquei louco. Só que tinha o problema da transmissão, que eu não podia me comprometer com o desfile. Então, eu fugi da cabine, fui lá, desfilei, dei pinta e voltei. Da metade para o fim, eu não desfilei. Achei muito legal me ver no amarelo, laranja e verde, com aquelas perucas e aqueles óculos. A coreografia de bater leque foi um dos grandes momentos, eu vivi para dançar e brincar aquilo. Eu amei”, relembra.
Ao ler sobre tanto conhecimento e alegria, o legado deixado por Milton Cunha no Carnaval é intenso e presente: “Quero deixar um legado humanista. Eu sou um humanista, acho que ninguém é melhor do que ninguém, que todo mundo está lutando. Então, eu detestava a minha infância porque era muito humilhado por ser quem eu sou e eu não compreendia. ‘Que gente estranha, por que não gostam de mim, não me querem, mas porque todo mundo tem direito a existir?’. Isso me forjou um humanista, eu me apiedo dos semelhantes de forma muito forte. O que eu quero deixar é democracia, inclusão, fraternidade e abraço caloroso entre humanos. Por isso é que todo o sofrimento da juventude não me destruiu, porque em vez de cair no egoísmo, rancor e ressentimento, ao contrário, eu me abri e disse: ‘Bom, já que passei o perrengue e foi muito ruim, deixa eu tentar fazer disso aqui o melhor que eu posso’."