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“A tendência dos peixes é acabar. Aliás, já acabou”, afirma ribeirinha sobre impactos de barragens

Estudo de longa duração registra as mudanças sociais causadas por barragens na Amazônia

A comunidade de Jaci-Paraná fica às margens do Rio Madeira, em Rondônia, mas a relação da sua população com o rio foi bastante alterada nos últimos anos. Isso porque a comunidade está localizada no trecho do rio entre duas grandes usinas hidrelétricas, Santo Antônio e Jirau, que figuram entre as maiores produtoras de energia do país.

“Quando fizeram a usina, os peixes já começaram a dar prejuízo para nós, porque os peixes foram se acabando. Os peixes não subiram mais. De lá [na barragem], não passa”, conta Dona Maria de Nazaré, pescadora e moradora de Jaci-Paraná. “Tem canto que onde você botava malhadeira [para pescar], você não consegue mais. Virou só o mato, só o capim e ninguém vai pegar peixe. Agora, a tendência dos peixes é acabar. Aliás, já acabou”, resume.

Essa percepção negativa de grandes empreendimentos energéticos é compartilhada por comunidades inteiras que vivem próximas às barragens na Amazônia e foi corroborada por estudos de longa duração sobre os impactos sociais de hidrelétricas na região. Intitulado “Depois das hidrelétricas: processos sociais e ambientais que ocorrem depois da construção de Belo Monte, Jirau, e Santo Antônio na Amazônia Brasileira", o projeto foi realizado por meio da iniciativa São Paulo Excellence Chairs (SPEC), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), em parceria com as universidades federais de Rondônia e do Pará, West Virginia University, entre outras instituições. O projeto é coordenado por Emilo Moran – professor das universidades Estadual de Campinas e de Michigan (EUA), que estuda a região amazônica desde a década de 1970, quando da construção da rodovia BR-230, a Transamazônica.


Atividade pesqueira em crise

A atividade de pesca é muito alterada pela construção de barragens, já que essas modificam o fluxo dos rios e provocam migração e morte de peixes. “Nós verificamos que houve uma diminuição acentuada na captura de algumas espécies, principalmente as espécies migradoras, como os grandes bagres, e essa diminuição na abundância dessas espécies e na captura levou uma diminuição acentuada na renda oriunda da pesca”, conta Carolina Dória, professora da Unir e pesquisadora da região há muitos anos, desde antes da construção das barragens.

Conforme os resultados das pesquisas no rio Madeira, houve redução de 30% nos rendimentos com a pesca e aumento do tempo gasto pescando. As capturas de peixes foram reduzidas em 37%, com grande prejuízo aos bagres migradores, como a Dourada.

Dona Gerônima da Costa, moradora de uma colônia de pescadores de Guajará-Mirim, município que fica a 200 km da hidrelétrica de Jirau no rio Madeira, percebe essas mudanças. “Os pescadores sentem muita falta dos bagres, filhotes, piraíba, jaú, pirarara. Dos grandes, sabe? Então, com isso aí [a barragem], prejudicou muito a classe de pescadores. Ainda se pesca, mas pouco e os menores”, conta ela.

Para Márcio Lima, pescador e morador do distrito de São Carlos, próximo a Jaci-Paraná e também localizado entre as duas usinas hidrelétricas, a situação é um pouco mais grave. “Hoje, nós não trabalhamos mais na atividade da pesca, porque não tem peixe. Eles desapareceram, o peixe acabou. Aquela piracema que todo ano tinha para povoar os rios, isso não existe mais”, ressalta.

Investir em hidrelétricas é mais sustentável?

Nesse cenário de crise pesqueira no rio Madeira, é importante destacar que as duas hidrelétricas mencionadas utilizam um modelo de construção que deveria gerar menos impactos sociais e ambientais. São as chamadas hidrelétricas ‘a fio d’água’, que produzem energia a partir do fluxo natural dos rios e possuem menor área de alagamento quando comparadas a hidrelétricas com reservatórios de armazenamento.


Para exemplificar, a usina de Tucuruí, no Pará, tem uma área de reservatório de 2.850 km² para uma capacidade de geração de energia de 8.370 MW. Santo Antônio e Jirau possuem reservatórios bem mais reduzidos, de 421 km2 e 361 km2, e uma capacidade de 3.5680 MW e 3.5680 MW, respectivamente.

Tais tipos de usinas hidrelétricas são consideradas mais sustentáveis, justamente, por causarem menos alagamentos, deslocamentos de pessoas e outros impactos secundários da construção dos grandes reservatórios. Porém, vários estudos – inclusive o SPEC – já vêm apontando que, mesmo com reservatórios relativamente menores, as barragens a fio d’água construídas na Amazônia ainda causam impactos significativos para a população local – que não usufrui da energia gerada pelos empreendimentos.

Para Emilio Moran, os impactos ambientais e sociais dessas barragens são enormes, ainda mais no rio Madeira, que é um rio rico em sedimentos e peixes e que alimenta a agricultura da várzea. “Foi bloqueado o rio principal [da bacia]. Isso é uma coisa que não se faz. Coloca-se uma barragem em um afluente, mas bloquear o rio principal cria um problema de sedimentação enorme. Além disso, não calcularam direito o tamanho da área inundada, que é mais do que o dobro da área planejada”, lembra. 

As barragens e a mudança climática

Após mais de uma década de estudos sistemáticos e contínuos, a equipe da pesquisa concorda que não se devem mais construir grandes hidrelétricas na Amazônia. Para eles, os impactos positivos são poucos e não ficam na região impactada. Já quem mora nas proximidades das barragens têm suas vidas inteiras alteradas de forma permanente e não recebem os benefícios – nem a energia fica mais barata e nem todas as compensações prometidas são entregues.

Além disso, “em um mundo com mudanças climáticas, cada vez vai ter menos água, mais calor, mais evaporação. Por isso, é menos seguro ter a água como fonte para produzir energia. A dependência na água não é uma boa aposta”, conta Moran. A seca histórica de 2024 no rio Madeira já é um exemplo disso.

O projeto

A pesquisa foi realizada por meio da iniciativa São Paulo Excellence Chairs (SPEC), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e foi desenvolvida em duas fases, ambas coordenadas por Emilo Moran. Participaram da investigação mais de 60 pesquisadores, de diversas áreas e regiões do país, considerando as duas fases.

A primeira fase, de 2013 a 2019, identificou os impactos negativos nas populações locais causados pela usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, em construção à época. Já a segunda fase da pesquisa foi iniciada em 2020 e examinou os processos e impactos de 5 a 10 anos após a finalização da construção, além de incluir as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira. Essa última fase é intitulada "Depois das hidrelétricas: processos sociais e ambientais que ocorrem depois da construção de Belo Monte, Jirau, e Santo Antônio na Amazônia Brasileira".

Participaram da pesquisa as universidades estaduais de Campinas e de São Paulo; as federais do Pará, de Rondônia e de Santa Catarina; as universidades estadunidenses de Michigan e de West Virginia; e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

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