Há 20 anos, congregação garante água potável à população de Marituba

Victor Furtado

Ter acesso a água potável e ao saneamento básico é um direito humano, universal e essencial. A determinação é da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2010. A média ideal é de 200 litros por dia. O Brasil é signatário desse ideal. Mas em Marituba, não fosse a congregação das Irmãs de São José de Chambéry, muitas pessoas não teriam esse direito fundamental garantido. Há 20 anos, elas fornecem água pura e limpa, gratuitamente, na propriedade que fica na travessa Prainha, no bairro Centro.

Às terças, quintas e sábados (não sendo feriados), as irmãs abrem as portas para a comunidade pegar água. Inicialmente, dava para abastecer os garrafões todos os dias. Mas, lentamente, a privacidade e o sossego das religiosas foi se perdendo, ao passo que não era mais só a comunidade carente que ia buscar água. Havia confusão, desrespeito e algumas pessoas pegavam o líquido até para vender. Foi preciso limitar o acesso e estabelecer regras. Esse tipo de abuso acabou com um outro ponto onde a água podia ser coletada, que era próximo da casa da congregação.

Agora tudo é mais organizado. Ainda assim, nos dias de portões abertos, as filas começam a se formar desde 6h. As regras estão em cartazes, que orientam sobre o melhor uso do espaço. Mensagens religiosas e educativas também estão por todo o lugar. A água limpa voltou a ser apenas para quem realmente precisa. As irmãs ressaltam que a qualidade foi atestada pelo Instituto Evandro Chagas (IEC). Só que não é uma fonte permanente e infinita. Próximo ao final do ano, o fornecimento tem algumas interrupções porque o nível da água baixa demais.

Cada pessoa pode abastecer até 60 litros. Geralmente, cada pessoa leva de um a três garrafões de 20 litros, que atualmente custa uma média de R$ 6 no município. Depois, é preciso dar a vez para os outros. Algumas pessoas são tão necessitadas que nem o garrafão borrachudo ou acrílico têm. Essas pegam garrafas PET, que encontram pelas ruas ou lixo e higienizam como podem. São relatos de quem frequenta o espaço e depende da água.

Outras regras são: cultivar a amizade, defender o direito e construir a paz; defender a qualidade de vida para todos; lutar por uma Marituba saudável, sem poluição; e apoiar a coleta seletiva dos resíduos da cidade. Quem puder, que contribua espontaneamente.

Enquanto cada um espera a bica preencher os vasilhames, conversas ocorrem. As histórias de vida circulam. De vez em quando, as irmãs conversam com os visitantes e desempenham o papel religioso que têm. E tentam engajar as pessoas na defesa pelo meio ambiente de Marituba. Não é raro que pessoas de Ananindeua, nas áreas mais limítrofes, também peguem água na casa da congregação.

image (Fábio Costa / O Liberal)

Necessidade e indignação com Cosanpa une a comunidade

Entre as tantas histórias que circulam por lá, há um ponto em comum: as reclamações sobre a qualidade da água da Companhia de Saneamento do Estado do Pará (Cosanpa). Todos os entrevistados relatam que a água da Cosanpa, no máximo, serve para higiene pessoal e afazeres domésticos. Para beber ou cozinhar não dá.

"Se ferver, a água da Cosanpa fica preta na panela. É muito suja", conta Jarina Santos. "Só essas irmãs de Deus para fazer por nós mesmo. Se não fosse, estávamos lascados aqui. Pagar água e ter de vir buscar noutro lugar é uma humilhação. E quem está desempregado, que são tantos em Marituba? Como iria comprar garrafão de água?", diz.

Na opinião do vigilante Alessandro Reis Rodrigues, água deveria ser de graça, "...pois é da natureza". Diz que, pegando água na casa das irmãs, já conheceu muita gente humilde e que depende da boa vontade das religiosas para ter água limpa. "Não só de Marituba, mas também de Ananindeua. Eu venho nos três dias em que elas abrem, para encher pelo menos um garrafão. Pelo que uso de água, se não fosse elas, eu gastaria R$ 20 por semana em água mineral".

João Maia Coelho é inspetor de segurança e também busca água na casa das Irmãs de São José de Chambéry. Ele confia na qualidade da água e diz ser tão limpa quanto água mineral. Também diz ser muito agradecido pela atuação da congregação e ações das religiosas, pois além da água e dos ensinamentos, fazem doações e caridade. Por isso, sempre que possível, doa um pouco do que tem para ajudar a manter o espaço.

"Ainda bem que não está poluído, devido a esse lixão que temos aqui em Marituba. Pela condição da água que a Cosanpa oferece por aqui, ou mesmo o que tem nos poços, muita gente passaria necessidade se não fosse essa fonte das irmãs. Já vi histórias de gente que não tinha o que comer. Só tinha a água", relata João, que paga R$ 90 por mês de água para a Cosanpa. E o que recebe, conta, vem com sujeira e ferrugem.

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Pelo menos 118 famílias dependem da água da casa das irmãs

Até o ano passado, quando as irmãs tentavam manter um cadastro, registraram a frequência de 118 famílias. É difícil saber exatamente quantas pessoas vão lá por dia. Esse registro demandava tempo e pessoal, algo que a congregação quase não tem disponível hoje em dia. Além da água, as irmãs também fazem tratamentos holísticos e têm as atividades religiosas próprias.

De forma simplificada, o holismo é um conceito de bem-estar, que envolve os aspectos físicos, mentais, espirituais e energéticos das pessoas. As terapias holísticas tentam equilibrar todas essas áreas do ser humano como um todo, melhorando a qualidade de vida. A casa das irmãs, na travessa Prainha, é um espaço no qual o silêncio e todas as plantas trazem uma sensação de paz. O tratamento começa desde a entrada.

Na casa, vivem apenas duas Irmãs de São José de Chambéry. Uma terceira está chegando. Uma das moradoras é a irmã Mercedes, uma mulher culta e sensível aos problemas sociais e ambientais de Marituba. É muito alinhada ao ideal de fundação da congregação, que nasceu em 1650, na comuna de Le Puy-en-Velay, no sul da França. A congregação tem foco no serviço social e na caridade. No Pará, essa é a única representação. No Brasil, há mais de 500 irmãs.

Em estudos da ONU, a falta de qualidade da água ou a falta de saneamento básico, anualmente, matam 1,5 milhão de crianças menores de cinco anos. Todos os anos, também, são perdidas 443 milhões de aulas pelos mesmos motivos. Não se sabe ao certo as estatísticas locais, mas segundo o Instituto Trata Brasil, o Pará tem um dos piores índices de saneamento do país, com o destaque negativo para a Região Metropolitana de Belém.

image (Fábio Costa / O Liberal)

Religiosa diz viver entre a gratidão e a indignação

Irmã Mercedes, apesar de falar num tom de voz baixo e calmo, é dura nas críticas às condições que vivem os cidadãos maritubenses. Diz viver entre dois sentimentos constantes. Por um lado, sente gratidão por viver num espaço que tem como oferecer água limpa, potável e gratuita para a população. Por outro lado, sente indignação pelo fato de tantas pessoas pagarem por água — ela reforçou ser um direito humano essencial para a garantia do direito à vida e à saúde — e não conseguirem beber, tendo de pagar mais ainda por água mineral.

"É uma vergonha. É ridículo. Por um descuido do poder público, tantas pessoas sofrem com problemas de saúde por falta de água potável e nós perdemos nossa privacidade para servir à comunidade. Pelo menos temos como ajudar", comenta irmã Mercedes.

Outra batalha constante das irmãs é por saneamento básico. Na área onde moram, a canalização de esgotos é precária. Elas mesmas é que tiveram de pagar, pessoalmente, para solucionar problemas que deveriam ser resolvidos pelo poder público.

Há três anos, a congregação procurou o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) por conta de problemas em obras no rio Uribóca. A religiosa diz não necessitar ser uma engenheira para perceber que a tubulação não dá conta do fluxo do rio.

O rio Uribóca já transbordou e invadiu a casa delas e casas vizinhas, com água contaminada por esgotos e lixo. O salão onde as terapias holísticas são feitas ficou inutilizável. A vizinha do lado sequer conseguiu sair de casa porque a água chegava aos joelhos. "E nos disseram que o problema está resolvido. Como?", questiona.

Constantemente, as Irmãs de São José de Chambéry se preocupam com os efeitos do aterro sanitário da Guamá Tratamento de Resíduos, em Marituba, nas águas. Irmã Mercedes teme que a contaminação chegue às águas de toda a região metropolitana de Belém. "Enquanto isso, nossos gestores estão viajando, com dinheiro público, para buscar formas de tratamento do lixo", critica.

Cosanpa aponta sucateamento deixado por gestões anteriores

Em nota, a Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa) informa que "...o município de Marituba é abastecido por sistemas de poços. Durante muitos anos, como os próprios moradores relatam, a manutenção foi precária e os equipamentos ficaram sucateados, com o abandono da empresa pelas gestões anteriores".

"A Cosanpa está com obras no sistema de água em andamento em Marituba, no bairro Beija Flor, e já está executando imediatamente as análises de rotina. Além disso, para melhorar a qualidade da água, nossas equipes já programaram a ida equipe técnica até o setor Centro para avaliação e adequação do tratamento que está sendo feito agora no bairro", diz a nota.

Por fim, a Cosanpa afirma que "...a nova gestão está trabalhando para mudar a realidade encontrada e garantir o serviço de qualidade que a população de Marituba e do Pará merecem".

A Prefeitura de Marituba foi acionada para falar sobre as obras no rio Uribóca, mas até agora não deu retorno.

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