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"Educação é direito. Não é mercadoria", diz presidente da Andes-SN

Trabalhadores da educação estão preocupados com propostas para o setor, pois tratam de problemas que não existem.

Victor Furtado / Redação Integrada de O Liberal
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Para o professor doutor Antônio Gonçalves, presidente do Sindicato Nacional dos Docentes de Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), o projeto do atual governo está seguindo uma lógica política que vem se desenvolvendo nos últimos 25 anos: a mercantilização da educação brasileira. Isso vale para a educação básica e para o ensino superior, aponta.

Trabalhadores da educação brasileira estão se mobilizando para evitar o avanço da precarização do setor. As expectativas são bem negativas com o novo governo. O 38º Congresso Andes-SN, no qual todas as pautas da categoria são discutidas, indo muito além de direitos trabalhistas (pautas corporativas), neste ano, foi sediado em Belém, na Universidade Federal do Pará (UFPA).

Em entrevista exclusiva ao Grupo Liberal, Antônio Gonçalves faz uma análise da educação brasileira, das propostas do governo Bolsonaro para o setor e do movimento de patrulhamento da atividade docente. Defende propostas que afirma serem as reais soluções para os verdadeiros problemas dos vários níveis da educação.

Médico e professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Antônio Gonçalves Filho é doutor em Fisiopatologia Clínica e Experimental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Além de médico experiente, o docente desenvolve estudos e pesquisas científica na área de Medicina, com ênfase em Cirurgia e Urologia. Em 2018, assumiu a presidência da Andes-SN, mandato que encerra em 2020.

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- Quais as pautas do congresso deste ano?

Para a região Norte, temos uma preocupação com a situação da demarcação de terras indígenas e quilombolas. O grande desafio desse congresso é avaliação do que será prioridade neste período, em que a conjuntura mudou e mudou para pior. A centralidade de nossa luta será construir a unidade da classe trabalhadora, a partir de uma frente que seja capaz de derrotar a reforma da previdência e a emenda constitucional 95 (de 2016, o teto de investimentos), E garantir nossa liberdade de expressão e de cátedra, barrando todos os ataques contra os serviços e servidores públicos. A qualidade do serviço público depende de servidores bem selecionados, qualificados e valorizados. Isso está sendo desconstruído paulatinamente há mais de 20 anos, com precarização das contratações e terceirizações.

- O que configura essa conjuntura nacional que mudou para pior no serviço público?

Não é algo que acontece apenas no Brasil. No mundo, vários países estão tendo experiências com governos de extrema direita, que atacam direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, diminuindo o papel do estado na garantia de direitos e prestação de serviços. Não temos acordo com isso. Para impor essa agenda, muitas vezes neoliberal, se tem usado a força e a coerção. Tememos que isso possa se intensificar no Brasil. Desde a lei antiterrorismo, que  vem de governos anteriores, e já deixava nós, militantes e lutadores sociais vulneráveis.

- Desde o início de 2018, passamos a ver de forma mais intensa e midiatizada a perseguição a professores em sala de aula. Qual o cenário atual para o professor brasileiro nesse aspecto?

Para esse projeto econômico neoliberal, opressor nas relações sociais e repressivo quanto às liberdades democráticas, há necessidade de controlar o processo de ensino e aprendizagem. Não à toa, militares estão sendo destacados para cuidar de universidades. Isso obviamente segue um viés ideológico. O que se quer é calar e tolher a livre expressão, com a argumentação de que há uma "cultura marxista" nas escolas brasileiras. É um fato risível. Tentaram, nesse sentido, aprovar o projeto "Escola Sem Partido". Com mobilização, criamos a frente nacional "Escola Sem Mordaça", que resultou no arquivamento do projeto. Mas sabemos que isso é temporário e que vão tentar trazer esse projeto de volta na nova legislatura. Dizem que há abusos políticos dentro de sala. Mas se esses abusos existem, devem ser resolvidos dentro da escola, através de conselhos e ouvidoria. Não precisamos de leis que estimulam patrulhamento da atividade docente e da liberdade de cátedra, que só vão piorar as coisas. Professores podem ficar com medo de usar determinadas práticas pedagógicas ou abordar temas e serem processados.

- E qual o objetivo desse tipo de projeto?

Quem conhece a realidade educacional do país, sabe que nossas dificuldades são concretas, na falta de bom ambiente de trabalho, de falta de recursos humanos e materiais, de alta evasão escolar, alto índice de analfabetismo e falta de acesso às escolas. Mas o que esses governos querem é isso: instrumentalizar a educação, como visto no século XIX, com a educação taylorista, na qual a maior parte da população só sabe ler e escrever, mas não é capaz de fazer uma interpretação de texto porque é desnecessário. O ministro da educação diz que só uma elite precisa ter acesso às universidades e produzir conhecimento. Nós queremos é o contrário. Queremos amplo acesso, permanência, assistência estudantil, políticas públicas, corpo técnico e docente, instituições de ensino superior de qualidade e com referência social. Somos contra esse tipo de política que visa diminuir o papel da educação e limitar acesso às universidades.

- O ministro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, divulgou as metas do governo para os primeiros 100 dias., Entre elas, algumas relacionadas à educação, como um novo plano de alfabetização. De tudo o que o novo governo aponta como projeto e política de educação, o que a Andes vê como positivo e o que vê como fora da realidade?

A gente acha que as propostas estão fora da realidade da educação brasileira. Não dá para analisar de forma isolada as propostas apresentadas. Fazem parte de um projeto maior para o país. Esse aparente desacerto do governo não pode ser menosprezado, nem a capacidade danosa de retirar direitos e reconfigurar o país. Mesmo não aparecendo nas propostas dos 100 dias, a reforma da previdência é sabida como prioridade do governo. A CPI da Previdência, no entanto, já provou não ter déficit na seguridade social do Brasil. Insistentemente, querem transferir esse direito para a iniciativa privada. A proposta que deve ser apresentada, além de aumentar a idade mínima para se aposentar, vem trazendo o sistema de capitalização, usado no Chile há 30 anos. Hoje, o aposentado no Chile recebe, aproximadamente, 56% do valor do salário mínimo. Para a educação, o que temos assistido e tende a se agravar, é a ampliação dos cortes no financiamento da educação. À União, cabe o financiamento da educação federal. Escolas de aplicação, universidades, institutos federais. Os cortes já vêm ocorrendo desde 2014. Todas as instituições estão com dificuldade de se manter por esses cortes. E o que se apresenta é que a universidade tem de se virar: vender serviços, cobrar mensalidade e isso é desresponsabilização do direito à educação. O próprio projeto de alfabetização apresentado, no projeto global de educação, é regressivo.

- Que desafios já vêm se apresentado à educação superior, desde os governos petistas, e quais as perspectivas para o futuro deste atual governo?

Nos últimos 25 anos, começamos passando pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que sucateou muito, com ampliação sobremaneira do ensino privado, com abertura de várias instituições. Na era Lula e Dilma, a política era no cravo e na ferradura. Houve, certamente, uma ampliação do ensino superior, com mais vagas, políticas de reparo histórico, cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência. Reconfigurou a composição discente nas universidades. A crítica que fazemos é que essa ampliação não foi sustentável e podemos encolher novamente pela falta de recursos para manutenção. Políticas como ProUni e Fies transferiram muitos recursos que poderiam ser investidos na educação pública, que poderia estar num patamar superior, para a iniciativa privada. No governo Temer, esse processo de sucateamento intensificou. O corte do orçamento foi de R$ 10 bilhões e tem comprometido a qualidade do nosso trabalho. Isso tudo nos preocupa. Educação é direito, não é mercadoria.
Há recursos para garantir o funcionamento do ensino público superior. O estudo do orçamento público da união observa que a parte que mais consome recursos é a dívida pública. Em 2018, 40% do orçamento foi gasto no pagamento de juros e serviços da dívida pública. É a transferência de quase metade dos fundos públicos para o capital especulativo, do capitalismo rentista. É uma crise que se mostra em outros países com economia neoliberal, que leva trabalhadores às ruas, como na França, com os Coletes Amarelos. Aqui na América do Sul, na Argentina, Macri tem encontrado uma forte resistência da classe trabalhadora. Na Colômbia, trabalhadores da educação e estudantes têm feito forte mobilização. Em Los Angeles, nos Estados Unidos, após 30 anos, se tem uma greve de professores, também por essas políticas neoliberais que colocam o Estado a serviço do capital e não da população. A dívida pública brasileira precisa de auditoria. Essa dívida já foi paga e não se pode penalizar a população.

- Qual a situação de programas educacionais, como ProUni, Fies, financiamentos de pesquisas, bolsas... Como estão entrando neste governo e como podem ficar nos próximos quatro anos?

Esses programas têm sobrevida porque tem lógica de transferência de recursos para a iniciativa privada. O Fies, atualmente, não está financiando 100% das bolsas por causa da crise econômica. Mas já há movimentação das universidades particulares em retornar esse financiamento a 100%. Há uma opinião do superministro da Economia, Paulo Guedes, que se deve aumentar a oferta de educação a distância (EAD). Ele tem relações familiares com pessoas que lidam com esse setor. É um conflito de interesses em se defender isso tão abertamente. Essa ampliação nos preocupa. Temos muito debate sobre isso. Da forma que estão propondo, compromete a qualidade do processo de ensino e aprendizagem. 

- E qual a realidade da EAD atual?

Cursos inteiros de graduação estão sendo defendidos para se fazer a distância. Isso pode falsear a formação. Muitos trabalhadores e trabalhadoras fazem esse tipo de curso, obtêm diploma e continuam desempregados. O diploma não está sendo capaz de mudar a vida das pessoas. E são atraídas para essas instituições privadas para cursos de pós-graduação. E ficam num ciclo vicioso de busca por novas qualificações para agregar valor ao seu diploma. Isso é ruim, porque causa desencanto com ensino superior. A universidade precisa ser transformadora, socialmente referenciada. Precisa proporcionar uma educação emancipatória. Não menosprezar o valor das relações ou supervalorizar a inclusão digital do país, que é baixíssima. Quando presidente fala em acabar com o politicamente correto e a ministra da Mulher diz que a educação precisa ser feita em casa, penso em como uma mãe, porque isso recai sobre a mulher através do machismo, sem creche para colocar os filhos, ainda vai ter de conectar a criança ao computador. Como a mulher vai trabalhar, se já tem uma dupla jornada? É um ataque generalizado a mulheres, povos tradicionais, população LGBTI+...

- O que deveria mudar para que a EAD fosse realmente uma boa opção?

A educação superior deve se dar num tripé: ensino, pesquisa e extensão. Hoje se tem só ensino, de técnicas e práticas laborais, que comprometem a qualidade da formação. Temos muitas pessoas formadas, mas sem qualificação adequada. Não parece haver interesse em divulgar que nas instituições públicas, onde há investimento, há educação de qualidade. O que se quer mesmo é transferir tudo para a iniciativa privada. Precisamos de educação superior inclusiva, independente do extrato social.

- Como o governo deve agir para realmente proporcionar a transformação que a população está esperando?

São muitas tarefas para a conquista do direito à educação. Mas o próprio processo eleitoral, da forma que se deu, sem debate, sem discussão e apresentação de propostas claras, só com mote de combate à corrupção - agora desnudada, aparecendo a face hipócrita - nos tolheu de um debate mais aprofundado. Educação precisa ser pública, com financiamento público. Não pode se apoiar na iniciativa privada. E precisa ser de qualidade, com condições de trabalho e facilidade de acesso. O financiamento precisa ser ampliado, ser prioridade. Precisa diminuir o impacto da dívida no orçamento. E isenções fiscais também são transferência de recursos para a iniciativa privada. 

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